Dias perfeitos
Foto: Tânia Tiburzio
Cecília Meireles
Dias perfeitos são esses em que a Metereologia
afirma, vai chover e chove mesmo: não os outros, quando se anda de capa e
guarda-chuva para cá e para lá, até se perder um dos dois ou os dois juntos.
Dias perfeitos são esses em que todos os
relógios amanhecem certos: o do pulso, o da cozinha, o da igreja, o da Glória,
o da Carioca, excetuando-se apenas os das relojoarias, pois a graça, destes, é
marcarem todos horas diferentes.
Dias perfeitos são esses em que os pneus
não amanhecem vazios: as ruas acordam com dois ou três buracos consertados,
pelo menos; o ônibus não vem em cima de nós, buzinando e na contramão; e os
sinais de cruzamento não estão enguiçados e os guardas estão no seu posto, sem
conversa para as morenas nem para os colegas.
Dias perfeitos são esses em que não cai
botão nenhum da nossa roupa ou, se cair, uma pessoa amável aparecerá correndo,
gastando o coração, para no-lo oferecer como quem oferece uma rosa, deplorando
não dispor de linha e agulha para voltar a pô-lo no lugar.
Dias perfeitos são esses em que ninguém
pisa nos nossos sapatos, nem esbarra com uma cesta nas nossas meias, ou, se
isso acontecer, pede milhões de desculpas, hábito que se vai perdendo com uma
velocidade supervostokiana.
Dias perfeitos são esses em que os
guichês do Correio dispõem de gentis senhoritas e respeitáveis senhores que não
estão fazendo crochê nem jogando xadrez sozinhos e não se aborrecem com o
mísero pretendente à expedição de uma carta aérea, e até sabem quanto pesa a
missiva e qual o seu destino, no mapa, e têm troco certo na gaveta, e não
atiram os selos pelo ar como quem solta pombos da cartola. (Ah, esses são dias
perfeitíssimos!...)
Dias perfeitos são esses em que o
motorista do carro de trás não buzina como um doido, os da direita e da
esquerda não dançam quadrilha na nossa frente, e os velhotes não leem jornal no
meio da rua, e as mocinhas que carregam à cabeça seus tabuleiros de penteados
não resolvem atravessar, com suas perninhas trepadas em metro e meio de saltos,
justamente por lugares por onde nem a bola de futebol doméstico se arrisca.
Dias perfeitos são esses em que se vai
ao teatro, como mandam os amigos, e os atores sabem o que estão fazendo, e a
vizinha de trás não conversa do prólogo ao epílogo sobre assuntos particulares,
e a menina da frente não chupa, não mastiga e não assovia caramelos e o
cavalheiro da esquerda não pega no sono, resvalando insensivelmente para cima
de nós o seu mavioso ronco.
Dias perfeitos, esses em que voltamos
para a casa e a encontramos intacta, no mesmo lugar, e intactos estão os nossos
tristes ossos, e podemos dormir em paz, tranqüilos e felizes como se
voltássemos apenas de um passeio pelos anéis de Saturno.
Cecília
Meireles. Crônicas para jovens. São Paulo:
Global, 2012.
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