Ser escritor


 

Cristovão Tezza

 Um amigo me disse que acha o maior barato como sou definido na coluna: “Fulano é escritor”. Por incrível que pareça, essa profissão exerce uma misteriosa atração nas pessoas. Há algo de sobrenatural na condição de escritor, um “atestado de diferença” que põe o leitor imediatamente em guarda, ou com uma admiração inexplicável, ou com uma justificada desconfiança. O escritor, como o espião, exerce uma atividade secreta. Reconhecemos de imediato os advogados, os engenheiros, os enfermeiros, os garis, os médicos (e até mesmo os deputados e vereadores, por um deslocamento de sentido, já que eles apenas cumprem funções por um período de tempo) como profissionais regulamentados, definidos claramente por um conjunto de regras que vão desde o aprendizado formal, chancelado pelo Estado, até a entrega de um diploma que nos autoriza a ser o que somos 
Mas quem nos “autoriza” a ser escritores? Começa por aí. Minha profissão é uma fraude, ou, dizendo de outro modo, somos livres-atiradores, mais ou menos como os bicheiros, mas felizmente sem sofrer nenhuma perseguição legal – pelo menos em tempos democráticos. No máximo uma carta furiosa para a redação ou um livro encalhado. Somos mais ou menos tolerados. Temos de assumir uma certa cara-de-pau, e declarar, sem vergonha: “Sou escritor”. Somos mais definidos pelo fim do que pelo início – um engenheiro é um engenheiro mesmo que jamais tenha erguido uma casa, mas um escritor sem obra pontificará no máximo na mesa de bar, que, aliás, é uma espécie incontornável de escola na formação de qualquer escritor que se preze. Escritores também são seres naturalmente clandestinos – em geral não gostam de pertencer a clubes e, como os ornitorrincos, resistem às classificações científicas. Claro que há as academias, as uniões de escritores, os grupos aqui e ali revolucionários, mas nada disso tem, nem de longe, a milésima parte do poder de um Crea, por exemplo, ou de uma OAB. Aliás, frequentemente esses agrupamentos oficiais de escritores acabam na mesa do bar sendo objeto de escárnio implacável de escritores avulsos e desparceirados.
Do ponto de vista prático, ser escritor é um mau negócio. Se fosse bom, bastaria abrir os classificados desta Gazeta para encontrar dezenas de chamadas do tipo “Contratam-se romancistas; pedem-se referências”, “Precisa-se de um poeta concretista”, “Estamos aceitando contistas com carteira assinada; salário inicial R$ 3.500 + produtividade”, “Urgente: sonetistas para trabalhar nas férias, especialização em alexandrinos, contrato de 60 dias, assistência médico-odontológica incluída”. Claro que isso é um sonho. Ninguém quer um escritor para nada. E no entanto trabalhamos sem parar. Estou sempre na luta, para garantir meu espaço – antes que o jornal anuncie nos classificados: “Precisa-se de um cronista com assunto para as terças-feiras”.

 Um operário em férias, Cristovão Tezza. Crônicas. Editora Record, 2013.
 

Comentários

  1. Também morro de vergonha, quando Victor me apresenta como escritora. Não me considero como tal. Publiquei alguns livros e só. Mas adoro escrever, se bem que ainda prefira ler. Escrever demanda muito tempo e quero tê-lo para ler os outros.

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