Ando esquecendo as palavras
Luci Afonso
Ando
esquecendo as palavras. Ontem, em meio a uma onda de calor, procurei aquele
objeto feito de varetas e de papel fino, geralmente rendado, que as damas
usavam para se refrescar no século XIX. Encontrei-o numa prateleira, meio
escondido entre os livros. Abanei-me longo tempo antes de lembrar como se
chamava.
No Verdurão,
esqueci o endereço para mandar entregar as compras. Era 210 ou 211? Apartamento
no quarto andar, que número? Do telefone de casa, só sabia o prefixo. Ao
preencher o cheque, forcei a memória antes de perguntar à moça do caixa em que
ano estávamos. Pedi à empregada que cozinhasse aquele tubérculo cor de vinho, meio duro, e o
servisse em rodelas, junto com a salada. Ela entendeu perfeitamente.
Em conversas
com amigos, com frequência interrompo o falante para dizer o que estou
pensando, porque no minuto seguinte terei esquecido. Depois lembro de novo, mas
o assunto já é outro. É assim: lembro, esqueço, lembro, esqueço, esqueço.
Parei de
escrever. Redigi uma mensagem de despedida para meu blog e cogitei tirá-lo do
ar. Logo comecei a ter aquela sensação esquisita, aquela agonia que dá a gente
não sabe por quê. Um peso no peito, um cansaço nos ombros. Consultei o cardiologista,
que ouviu atentamente a descrição dos sintomas. Dei sorte em encontrar um
médico com capacidade de abstração. Ele diagnosticou com facilidade a síndrome
da abstinência de palavras, muito comum em determinados grupos de risco, e
prescreveu o remédio mais eficaz: um parágrafo três vezes ao dia, de início, com
aumento gradativo da dose até alcançar a melhora desejada.
O tratamento
começa a surtir efeito. Neste domingo, acordei com vontade de escrever e corri
para o computador, com medo de esquecer a vontade. Lembrei das pessoas que
precisam do que eu digo. Aconteceu também de ler as palavras de uma amiga,
saídas daquele órgão que bate sem parar e bombeia sangue para o corpo. As
palavras dela despertaram as minhas, e por isso estou aqui.
Acontece de
repente, igual a quando a gente reencontra o que havia perdido, ou igual a quando
o sol da manhã invade o apartamento que acabou de acordar. Daqui a pouco lembro
o nome dessa coisa boa, que só a palavra me dá.
Imagem: www.facebook.com
Bom-dia, Luci!
ResponderExcluirMuito bom o seu texto. Não se preocupe em demasia com esquecimentos. Minha neta de 10 anos vive me peguntando onde está isso ou aquilo. Mas, não saia de casa sem o seu endereço à mão. Sempre é bom prevenir. Eu também tenho que anotar quase tudo o que preciso fazer e também não posso esperar a hora certa de falar, sob risco de esquecer o que tinha de tão importante para falar...
Um beijo e não se esqueça do meu blog (bisous-angela.blogspot.com), ultimamente postei algo da Jacqueline, mas amanhã já vou postar coisa nova.
Lucy querida,
ResponderExcluirsó não esqueça que suas palavras tocam profundamente a alma. A minha tá tocada e agradecida. Depois me passe o endereço do "medico" (risos)...Fantástica essa sacada. O texto tá lindo!!!!
Luci
ResponderExcluirEsse seu médico é fantástico. Nunca vi um diagnóstico tão preciso e uma receita tão poética e eficiente. Posso me meter no assunto? Não deixe de tomar sua dose diária, e veja se não há problema em tomar um pouquinho além do receitado. Penso que neste caso não há qualquer contraindicação.
Um abraço
Elicio
Em tempo, também quero o nome desse médico fantástico!
ResponderExcluirBeijos.
Que texto maravilhoso! Que médico fantástico! Também quero me consultar. E tomar todos os dias desse remédio miraculoso que é o escrever. Como sempre, uma prosa arrebatadora.
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