O colocador de pronomes
Aldrovando
Cantagalo veio ao mundo em virtude dum erro de gramática.
Durante
sessenta anos de vida terrena pererecou como um peru em cima da gramática.
E morreu,
afinal, vítima dum novo erro de gramática.
Martir da
gramática, fique este documento da sua vida como pedra angular para uma futura
e bem merecida canonização,
Havia em
Itaoca um pobre moço que definhava de tédio no fundo de um cartório.
Escrevente. Vinte e três anos. Magro. Ar um tanto palerma. Ledor de versos
lacrimogêneos e pai duns acrósticos dados à luz no "Itaoquense", com
bastante sucesso.
Vivia em paz com as suas certidões quando o frechou venenosa seta de Cupido. Objeto amado: a filha mais moça do coronel Triburtino, o qual tinha duas, essa Laurinha, do escrevente, então nos dezessete, e a do Carmo, encalhe da família, vesga, madurota, histérica, manca da perna esquerda e um tanto aluada.
Vivia em paz com as suas certidões quando o frechou venenosa seta de Cupido. Objeto amado: a filha mais moça do coronel Triburtino, o qual tinha duas, essa Laurinha, do escrevente, então nos dezessete, e a do Carmo, encalhe da família, vesga, madurota, histérica, manca da perna esquerda e um tanto aluada.
Triburtino
não era homem de brincadeira. Esguelara um vereador oposicionista em plena
sessão da câmara e desd'aí se transformou no tutú da terra. Toda gente lhe
tinha um vago medo; mas o amor, que é mais forte que a morte, não receia
sobrecenhos enfarruscados nem tufos de cabelos no nariz.
Ousou o
escrevente namorar-lhe a filha, apesar da distância hierárquica que os
separava. Namoro à moda velha, já se vê, pois que nesse tempo não existia a
gostosura dos cinemas. Encontros na igreja, à missa, troca de olhares, diálogos
de flores - o que havia de inocente e
puro. Depois, roupa nova, ponta de lenço de seda a entremostrar-se no bolsinho
de cima e medição de passos na rua d'Ela, nos dia de folga. Depois, a serenata
fatal à esquina, com o Acorda, donzela...
Sapecado a
medo num velho pinho de empréstimo. Depois, bilhetinho perfumado.
Aqui se
estrepou...
Escrevera nesse bilhetinho, entretanto, apenas quatro palavras, afora
pontos exclamativos e reticências:
Anjo
adorado!
Amo-lhe!
Para abrir o
jogo bastava esse movimento de peão.
Ora,
aconteceu que o pai do anjo apanhou o bilhetinho celestial e, depois de três
dias de sobrecenho carregado, mandou chamá-lo à sua presença, com disfarce de
pretexto - para umas certidõesinhas,
explicou.
Apesar disso
o moço veio um tanto ressabiado, com a pulga atrás da orelha.
Não lhe
erravam os pressentimentos. Mas o pilhou portas aquém, o coronel trancou o
escritório, fechou a carranca e disse:
- A família Triburtino de Mendonça é a mais
honrada desta terra, e eu, seu chefe natural, não permitirei nunca - nunca, ouviu? - que contra ela se cometa o menor deslize. Parou.
Abriu uma gaveta. Tirou de dentro o bilhetinho cor de rosa, desdobrou-o.
- É sua esta peça de flagrante delito?
O
escrevente, a tremer, balbuciou medrosa confirmação.
- Muito bem! Continuou o coronel em tom mais
sereno. Ama, então, minha filha e tem a audácia de o declarar... Pois agora...
O
escrevente, por instinto, ergueu o braço para defender a cabeça e relanceou os
olhos para a rua, sondando uma retirada estratégica.
- ... é casar! Concluiu de improviso o vingativo
pai.
O escrevente
ressuscitou. Abriu os olhos e a boca, num pasmo. Depois, tornando a si, comoveu-se
e com lágrimas nos olhos disse, gaguejante:
- Beijo-lhe as mãos, coronel! Nunca imaginei
tanta generosidade em peito humano!
Agora vejo
com que injustiça o julgam aí fora!...
Velhacamente
o velho cortou-lhe o fio das expansões.
- Nada de frases, moço, vamos ao que serve:
declaro-o solenemente noivo de minha filha!
E voltando-se
para dentro, gritou:
- Do Carmo! Venha abraçar o teu noivo!
O escrevente
piscou seis vezes e, enchendo-se de coragem, corrigiu o erro.
- Laurinha, quer o coronel dizer...
O velho
fechou de novo a carranca.
- Sei onde trago o nariz, moço. Vassuncê mandou
este bilhete à Laurinha dizendo que ama-"lhe". Se amasse a ela deveria
dezer amo-"te". Dizendo "amo-lhe" declara que ama a uma
terceira pessoa, a qual não pode ser senão a Maria do Carmo. Salvo se declara
amor à minha mulher...
- Oh, coronel...
- ... ou a preta Luzia, cozinheira. Escolha!
O
escrevente, vencido, derrubou a cabeça com uma lágrima a escorrer rumo à asa do
nariz. Silenciaram ambos, em pausa de tragédia.
Por fim o
coronel, batendo-lhe no ombro paternalmente, repetiu a boa lição da gramática
matrimonial.
- Os pronomes, como sabe, são três: da primeira
pessoa - quem fala, e neste caso
vassuncê; da Segunda pessoa - a quem
fala, e neste caso Laurinha; da terceira pessoa - de quem se fala, e neste caso do Carmo, minha
mulher ou a preta. Escolha!
Não havia
fuga possível.
O escrevente
ergueu os olhos e viu do Carmo que entrava, muito lampeira da vida, torcendo
acanhada a ponta do avental. Viu também sobre a secretária uma garrucha com
espoleta nova ao alcance do maquiavélico pai, submeteu-se e abraçou a urucaca,
enquanto o velho, estendendo as mãos, dizia teatralmente:
- Deus vos abençoe, meus filhos!
No mês
seguinte, e onze meses depois vagia nas mãos da parteira o futuro professor
Aldrovando, o conspícuo sabedor de língua que durante cinqüenta anos a fio
coçaria na gramática a sua incurável sarna filológica.
Até aos dez
anos não revelou Aldrovando pinta nenhuma. Menino vulgar, tossiu a coqueluche
em tempo próprio, teve o sarampo da praxe, mas a cachumba e a catapora. Mais
tarde, no colégio, enquanto os outros enchiam as horas de estudo com invenções
de matar o tempo - empalamento de moscas
e moidelas das respectivas cabecinhas entre duas folhas de papel, coisa de ver
o desenho que saía - Aldrovando apalpava
com erótica emoção a gramática de Augusto Freire da Silva. Era o latejar do
furúnculo filológico que o determinaria na vida, para matá-lo, afinal...
Deixêmo-lo,
porém, evoluir e tomêmo-lo quando nos serve, aos 40 anos, já a descer o morro,
arcado ao peso da ciência e combalido de rins. Lá está ele em seu gabinete de
trabalho, fossando à luza dum lampião os pronomes de Filinto Elísio. Corcovado,
magro, seco, óculos de latão no nariz, careca, celibatário impenitente, dez
horas de aulas por dia, duzentos mil réis por mês e o rim volta e meia a fazer-se
lembrado.
Já leu tudo. Sua vida foi sempre o mesmo poento idílio com as veneráveis costaneiras onde cabeceiam os clássicos lusitanos. Versou-os um por um com mão diurna e noturna. Sabe-os de cór, conhece-os pela morrinha, distingue pelo faro uma séca de Lucena duma esfalfa de Rodrigues Lobo. Digeriu todas as patranhas de Fernão Mendes Pinto. Obstruiu-se da broa encruada de Fr. Pantaleão do Aveiro. Na idade em que os rapazes correm atrás das raparigas, Aldrovando escabichava belchiores na pista dos mais esquecidos mestres da boa arte de maçar. Nunca dormiu entre braços de mulher. A mulher e o amor - mundo, diabo e carne eram para ele os alfarrábios freiráticos do quinhentismo, em cuja soporosa verborréia espapaçava os instintos lerdos, como porco em lameiro.
Já leu tudo. Sua vida foi sempre o mesmo poento idílio com as veneráveis costaneiras onde cabeceiam os clássicos lusitanos. Versou-os um por um com mão diurna e noturna. Sabe-os de cór, conhece-os pela morrinha, distingue pelo faro uma séca de Lucena duma esfalfa de Rodrigues Lobo. Digeriu todas as patranhas de Fernão Mendes Pinto. Obstruiu-se da broa encruada de Fr. Pantaleão do Aveiro. Na idade em que os rapazes correm atrás das raparigas, Aldrovando escabichava belchiores na pista dos mais esquecidos mestres da boa arte de maçar. Nunca dormiu entre braços de mulher. A mulher e o amor - mundo, diabo e carne eram para ele os alfarrábios freiráticos do quinhentismo, em cuja soporosa verborréia espapaçava os instintos lerdos, como porco em lameiro.
Em certa
época viveu três anos acampado em Vieira. Depois vagabundeou, como um Robinson,
pelas florestas de Bernardes.
Aldrovando
nada sabia do mundo atual. Desprezava a natureza, negava o presente. Passarinho
conhecia um só: o rouxinol de Bernadim Ribeiro. E se acaso o sabiá de Gonçalves
Dias vinha citar "pomos de Hesperides" na laranjeira do seu quintal,
Aldrovando esfogueteava-o com apostrofes:
- Salta fora, regionalismo de má sonância!
A língua
lusa era-lhe um tabu sagrado que atingira a perfeição com Fr. Luiz de Sousa, e
daí para cá, salvo lucilações esporádicas, vinha chafurdando no ingranzéu
barbaresco.
- A ingresia d'hoje, declamava ele, está para a
Língua, como o cadáver em putrefação está para o corpo vivo.
E suspirava,
condoído dos nossos destinos:
- Povo sem língua!... Não me sorri o futuro de
Vera-Cruz...
E não lhe
objetassem que a língua é organismo vivo e que a temos a evoluir na boca do
povo.
- Língua? Chama você língua à garabulha
bordalenga que estampam periódicos?
Cá está um
desses galicígrafos. Deletreemo-lo ao acaso.
E, baixando as cangalhas, lia:
- Teve lugar ontem... É língua esta espurcícia
negral? Ó meu seráfico Frei Luiz, como te conspurcam o divino idioma estes
sarrafaçais da moxinifada!
- ... no Trianon... Por que, Trianon? Por que
este perene barbarizar com alienígenos arrevesos? Tão bem ficava - a Benfica, ou, se querem neologismo de bom
cunho o Logratório...Tarelos é que são, tarelos!
E suspirava
deveras compungido.
- Inútil prosseguir. A folha inteira cacografa-se
por este teor. Aí! Onde param os boas letras d'antanho? Fez-se peru o níveo
cisne. Ninguém atende à lei suma - Horácio! Impera o desprimor, e o mau gosto
vige como suprema regra. A gálica intrujice é maré sem vazante. Quando penetro
num livreiro o coração se me confrange ante o pélago de óperas barbarescas que
nos vertem cá mercadores de má morte. E é de notar, outrossim, que a elas se
vão as preferências do vulgacho. Muito não faz que vi com estes olhos um gentil
mancebo preferir uma sordície de Oitavo Mirbelo, Canhenho duma dama de servir,
(1) creio, à... advinhe ao que, amigo? A Carta de Guia do meu divino Francisco
Manoel!...
- Mas a evolução...
- Basta. Conheço às sobejas a escolástica da
época, a "evolução" darwinica, os vocábulos macacos - pitecofonemas que "evolveram",
perderam o pelo e se vestem hoje à moda de França, com vidro no olho. Por amor
a Frei Luiz, que ali daquela costaneira escandalizado nos ouve, não remanche o
amigo na esquipática sesquipedalice.
Um biógrafo ao molde clássico separaria a vida de Aldrovando em duas fases distingas: a estática, em que apenas acumulou ciência, e a dinâmica, em que, transfeito em apóstolo, veio a campo com todas as armas para contrabater o monstro da corrupção. Abriu campanha com memorável ofício ao congresso, pedindo leis repressivas contra os ácaros do idioma.
Um biógrafo ao molde clássico separaria a vida de Aldrovando em duas fases distingas: a estática, em que apenas acumulou ciência, e a dinâmica, em que, transfeito em apóstolo, veio a campo com todas as armas para contrabater o monstro da corrupção. Abriu campanha com memorável ofício ao congresso, pedindo leis repressivas contra os ácaros do idioma.
- "Leis, senhores, leis de Dracão, que
diques sejam, e fossados, e alcaçares de granito prepostos à defensão do
idioma. Mister sendo, a forca se restaure, que mais o baraço merece quem
conspurca o sacro patrimônio da sã vernaculidade, que quem ao semelhante a vida
tira. Vêde, senhores, os pronomes, em que lazeira jazem...
Os pronomes,
aí! Eram a tortura permanente do professor Aldrovando. Doía-lhe como punhalada
vê-los por aí pré ou pospostos contra-regras elementares do dizer castiço. E
sua representação alargou-se nesse pormenor, flagelante, concitando os pais da
pátria à criação dum Santo Ofício gramatical.
Os ignaros
congressistas, porém, riram-se da memória, e grandemente piaram sobre
Aldrovando
as mais cruéis chalaças.
- Quer que instituamos patíbulo para os maus
colocadores de pronomes! Isto seria auto-condenar-nos à morte! Tinha graça!
Também lhe
foi à pele a imprensa, com pilhérias soezes. E depois, o público. Ninguém
alcançara a nobreza do seu gesto, e Aldrovando, com a mortificação n'alma, teve
que mudar de rumo. Planeou recorrer ao púlpito dos jornais. Para isso mister
foi, antes de nada, vencer o seu velho engulho pelos "galicígrafos de
papel e graxa". Transigiu e, breve, desses "pulmões da pública
opinião" apostrofou o país com o verbo tonante de Ezequiel. Encheu colunas
e colunas de objurgatórias ultra violentas, escritas no mais estreme vernáculo.
Mas não foi
entendido. Raro leitor metia os dentes naqueles intermináveis períodos
engrenados à moda de Lucena; e ao cabo da aspérrima campanha viu que pregara em
pleno deserto. Leram- no apenas a meia dúzia de Aldrovandos que vegetam sempre
em toda parte, como notas rezinguentas da sinfonia universal.
A massa dos
leitores, entretanto, essa permaneceu alheia aos flamívomos pelouros da sua
colubrina sem raia. E por fim os "periódicos" fecharam-lhe a porta no
nariz, alegando falta de espaço e coisas.
- Espaço não há para as sãs idéias, objurgou o
enxotado, mas sobeja, e pressuroso, para quanto recende à podriqueira!...
Gomorra! Sodoma! Fogos do céu virão um dia alimpar- vos a gafa!... exclamou,
profético, sacudindo à soleira da redação o pó das cambaias botinas de
elástico.
Tentou em
seguida ação mais direta, abrindo consultório gramatical.
- Têm- nos os físicos (queria dizer médicos), os
doutores em leis, os charlatãs de toda espécie. Abra-se um para a medicação da
grande enferma, a língua. Gratuito, já se vê, que me não move amor de bens
terrenos.
Falhou a
nova tentativa. Apenas moscas vagabundas vinham esvoejar na salinha modesta do
apóstolo. Criatura humana nem uma só lá apareceu afim de remendar-se
filologicamente.
Ele,
todavia, não esmoreceu.
- Experimentemos processo outro, mais suasório.
E anunciou a
montagem da "Agência de Colocação de Pronômes e Reparos
Estilísticos".
Quem tivesse um autógrafo a rever, um memorial a expungir de cincas, um calhamaço a compor-se com os "afeites" do lídimo vernáculo, fosse lá que, sem remuneração nenhuma, nele se faria obra limpa e escorreita.
Quem tivesse um autógrafo a rever, um memorial a expungir de cincas, um calhamaço a compor-se com os "afeites" do lídimo vernáculo, fosse lá que, sem remuneração nenhuma, nele se faria obra limpa e escorreita.
Era boa a
idéia, e logo vieram os primeiros originais necessitados de ortopedia, sonetos a
consertar pés de verso, ofícios ao governo pedindo concessões, cartas de amor.
Tais, porém,
eram as reformas que nos doentes operava Aldrovando, que os autores não mais
reconheciam suas próprias obras. Um dos clientes chegou a reclamar.
- Professor, v. s. enganou-se. Pedi limpa de
enxada nos pronomes, mas não que me traduzisse a memória em latim...
Aldrovando
ergueu os óculos para a testa:
- E traduzi em latim o tal ingranzéu?
- Em latim ou grego, pois que o não consigo
entender...
Androvando
empertigou-se.
- Pois, amigo, errou de porta. Seu caso é alí
com o alveitar da esquina.
Pouco durou
a Agência, morta à míngua de clientes. Teimava o povo em permanecer empapado no
chafurdeiro da corrupção...
O rosário de
insucessos, entretanto, em vez de desalentar exasperava o apóstolo.
- Hei-de influir na minha época. Aos tarelos hei
de vencer. Fogem- me à férula os maráus de pau e corda? Ir-lhes-ei empós, fila-los-eis
pela gorja... Salta rumor!
E foi-lhes
"empós", Andou pelas ruas examinando dísticos e tabuletas com vícios
de língua. Descoberta a "asnidade", ia ter com o proprietário, contra
ele desfechando os melhores argumentos catequistas.
Foi assim
com o ferreiro da esquina, em cujo portão de tenda uma tabuleta - "Ferra-se cavalos" - escoicinhava a santa gramática.
- Amigo, disse-lhe pachorrentamente Aldrovando,
natural a mim me parece que erre, alarve que és. Se erram paredros, nesta época
de ouro da corrupção...
O ferreiro
pôs de lado o malho e entreabriu a boca.
- Mas da boa sombra do teu focinho espero,
continuou o apóstolo, que ouvidos me darás. Naquela tábua um dislate existe que
seriamente à língua lusa ofende. Venho pedir-te, em nome do asseio gramatical,
que o expunjas.
- ? ? ?
- Que reformes a tabuleta, digo.
- Reformar a tabuleta? Uma tabuleta nova, com a
licença paga? Estará acaso rachada?
- Fisicamente, não. A racha é na sintaxe. Fogem
ali os dizeres à sã gramaticalidade.
O honesto
ferreiro não entendia nada de nada.
- Macacos me
lambam se estou entendendo o que v. s. diz...
- Digo que
está a forma verbal com eiva grave. O "ferra-se" tem que cair no
plural, pois que a forma é passiva e o sujeito é "cavalos".
O ferreiro
abriu o resto da boca.
-o sujeito
sendo "cavalos", continuou o mestre, a forma verbal é "ferram-se"
- "ferram-se cavalos!"
- Ahn!
Respondeu o ferreiro, começo agora a compreender. Diz v. s. que ...
- ... que
"ferra-se cavalos" é um solecismo horrendo e o certo é "ferram-se
cavalos".
- V. S. me perdoe, mas o sujeito que ferra os cavalos sou eu, e eu não sou plural. Aquele "se" da tabuleta refere-se cá a este seu criado. É como quem diz: Serafim ferra cavalos - Ferra Serafim cavalos. Para economizar tinta e tábua abreviaram o meu nome, e ficou como está: Ferra Se (rafim) cavalos. Isto me explicou o pintor, e entendi-o muito bem. Aldrovando ergueu os olhos para o céu e suspirou.
- V. S. me perdoe, mas o sujeito que ferra os cavalos sou eu, e eu não sou plural. Aquele "se" da tabuleta refere-se cá a este seu criado. É como quem diz: Serafim ferra cavalos - Ferra Serafim cavalos. Para economizar tinta e tábua abreviaram o meu nome, e ficou como está: Ferra Se (rafim) cavalos. Isto me explicou o pintor, e entendi-o muito bem. Aldrovando ergueu os olhos para o céu e suspirou.
- Ferras
cavalos e bem merecias que te fizessem eles o mesmo!... Mas não discutamos.
Ofereço-te dez mil réis pela admissão dum "m" ali...
-se V. S.
paga...
Bem
empregado dinheiro! A tabuleta surgiu no dia seguinte dessolecismada,
perfeitamente de acordo com as boas regras da gramática. Era a primeira vitória
obtida e todas as tardes Aldrovando passava por lá para gozar-se dela.
Por mal seu,
porém, não durou muito o regalo. Coincidindo a entronização do "m"
com maus negócios na oficina, o supersticioso ferreiro atribuiu a macaca à
alteração dos dizeres e lá raspou o "m" do professor.
A cara que
Aldrovando fez quando no passeio desse dia deu com a vitória borrada! Entrou
furioso pela oficina a dentro, e mascava uma apóstrofe de fulminar quando o
ferreiro, às brutas, lhe barrou o passo.
- Chega de
caraminholas, ó barata tonta! Quem manda aqui, no serviço e na língua, sou eu.
E é ir andando antes que eu o ferre com bom par de ferros ingleses!
O mártir da
língua meteu a gramática entre as pernas e moscou-se.
- "Sancta
simplicitas!" ouviram-no murmurar na rua, de rumo à casa, em busca das
consolações seráficas de Fr. Heitor Pinto. Chegado que foi ao gabinete de
trabalho, caiu de borco sobre as costaneiras venerandas e não mais conteve as
lágrimas, chorou...
O mundo
estava perdido e os homens, sobre maus, eram impenitentes. Não havia desviá-los
do ruim caminho, e ele, já velho, com o rim a rezingar, não se sentia com
forças para a continuação da guerra.
- Não hei de
acabar, porém, antes de dar a prelo um grande livro onde compendie a muita
ciência que hei acumulado.
E Aldrovando
empreendeu a realização de um vastíssimo programa de estudos filológicos.
Encabeçaria a série um tratado sobre a colocação dos pronomes, ponto onde mais
claudicava a gente de Gomorra.
Fê-lo, e foi
feliz nesse período de vida em que, alheio ao mundo, todo se entregou, dia e
noite, à obra magnífica. Saiu trabuco volumoso, que daria três tomos de 500
páginas cada um, corpo miúdo. Que proventos não adviriam dali para a
lusitanidade. Todos os casos resolvidos para sempre, todos os homens de boa
vontade salvos da gafaria! O ponto fraco do brasileiro falar resolvido de vez!
Maravilhosa coisa...
Pronto o
primeiro tomo - Do pronome Se - anunciou a obra pelos jornais, ficando à
espera das chusmas de editores que viriam disputá- la à sua porta. E por uns
dias o apóstolo sonhou as delícias da estrondosa vitória literária, acrescida
de gordos proventos pecuniários.
Calculava em
oitenta contos o valor dos direitos autorais, que, generoso que era, cederia
por cinqüenta. E cinqüenta contos para um velho celibatário como ele, sem
família nem vícios, tinha a significação duma grande fortuna. Empatados em
empréstimos hipotecários sempre eram seus quinhentos mil réis por mês de renda,
a pingarem pelo resto da vida na gavetinha onde, até então, nunca entrara
pelega maior de duzentos. Servia, servia!.. E Aldrovando, contente, esfregava
as mãos de ouvido alerta, preparando frases para receber o editor que vinha
vindo...
Que vinha
vindo mas não veio, aí!... As semanas se passaram sem que nenhum representante
dessa miserável fauna de judeus surgisse a chatinar o maravilhoso livro.
- Não me vêm a mim? Salta rumor! Pois me vou a eles!
- Não me vêm a mim? Salta rumor! Pois me vou a eles!
E saiu em
via sacra, a correr todos os editores da cidade.
Má gente!
Nenhum lhe quis o livro sob condições nenhumas. Torciam o nariz, dizendo
"Não é vendável"; ou: "Porque não faz antes uma cartilha
infantil aprovada pelo governo?
Aldrovando,
com a morte n'alma e o rim dia a dia mais derrancado, retesou-se nas últimas
resistências.
- Fá-la-ei
imprimir à minha custa! Ah, amigos! Aceito o cartel. Sei pelejar com todas as
armas e irei até ao fim. Bofé!
Para lugar
era mister dinheiro e bem pouco do vilíssimo metal possuía na arca o alquebrado
Aldrovando. Não importa! Faria dinheiro, venderia móveis, imitaria Bernardo de
Pallissy, não morreria sem ter o gosto de acaçapar Gomorra sob o peso da sua
ciência impressa. Editaria ele mesmo um por um todos os volumes da obra
salvadora.
Disse e fez.
Passou esse
período de vida alternando revisão de provas com padecimentos renais. Venceu. O
livro compôs-se, magnificamente revisto, primoroso na linguagem como não
existia igual.
Dedicou-o a
Fr. Luz de Souza:
À memória
daquele que me sabe as dores,
O Autor.
Mas não quis
o destino que o já trêmulo Aldrovando colhesse os frutos de sua obra. Filho dum
pronome impróprio, a má colocação doutro pronome lhe cortaria o fio da vida.
Muito
corretamente havia ele escrito na dedicatória: ...daquele que me sabe... e nem
poderia escrever doutro modo um tão conspícuo colocador de pronomes.
Maus fados
intervieram, porém - até os fados
conspiram contra a língua! - e por
artimanha do diabo que os rege empastelou-se na oficina esta frase. Vai o
tipógrafo e recompõe- na a seu modo ...d'aquele que sabe- me as dores... E
assim saiu nos milheiros de cópias da avultada edição.
Mas não
antecipemos.
Pronta a
obra e paga, ia Aldrovando recebê- la, enfim. Que glória! Construíra,
finalmente, o pedestal da sua própria imortalidade, ao lado direito dos sumos
cultores da língua.
A grande idéia do livro, exposta no capítulo VI - Do método automático de bem colocar os pronomes - engenhosa aplicação duma regra mirífica por meio da qual até os burros de carroça poderiam zurrar com gramática, operaria como o "914" da sintaxe, limpando- a da avariose produzida pelo espiroqueta da pronominuria.
A grande idéia do livro, exposta no capítulo VI - Do método automático de bem colocar os pronomes - engenhosa aplicação duma regra mirífica por meio da qual até os burros de carroça poderiam zurrar com gramática, operaria como o "914" da sintaxe, limpando- a da avariose produzida pelo espiroqueta da pronominuria.
A excelência
dessa regra estava em possuir equivalentes químicos de uso na farmacopéia
alopata, de modo que a um bom laboratório fácil lhe seria reduzí-la a ampolas
para injeções hipodérmicas, ou a pílulas, pós ou poções para uso interno.
E quem se
injetasse ou engolisse uma pípula do futuro PRONOMINOL CANTAGALO, curar-se-ia
para sempre do vício, colocando os pronomes instintivamente bem, tanto no falar
como no escrever. Para algum caso de pronomorreia agudo, evidentemente
incurável, haveria o recurso do PRONOMINOL Nº 2, onde entrava a estriquinina em
dose suficiente para libertar o mundo do infame sujeito.
Que glória!
Aldrovando prelibava essas delícias todas quando lhe entrou casa a dentro a
primeira carroçada de livros. Dois brutamontes de mangas arregaçadas empilharam-
nos pelos cantos, em rumas que lá se iam; e concluso o serviço um deles pediu:
- Me dá um
mata-bicho, patrão!
Aldrovando
severizou o semblante ao ouvir aquele "Me" tão fora dos mancais, e
tomando um exemplo da obra ofertou-a ao "doente".
- Toma lá. O
mau bicho que tens no sangue morrerá asinha às mãos deste vermífugo. Recomendo-te
a leitura do capítulo sexto.
O carroceiro
não se fez rogar; saiu com o livro, dizendo ao companheiro:
- Isto no
"sebo" sempre renderá cinco tostões. Já serve!
Mal se
sumiram, Aldrovando abancou-se à velha mesinha de trabalho e deu começo à
tarefa de lançar dedicatórias num certo número de exemplares destinados à
crítica. Abriu o primeiro, e estava já a escrever o nome de Rui Barbosa quando
seus olhos deram com a horrenda cinca:
"daquele
QUE SABE-ME as dores".
- Deus do
céu! Será possível?
Era
possível. Era fato. Naquele, como em todos os exemplares da edição, lá estava,
no hediondo relevo da dedicatória a Fr. Luiz de Souza, o horripilantíssimo- "que sabe-me"...
Aldrovando
não murmurou palavra. De olhos muito abertos, no rosto uma estranha marca de
dor - dor gramatical inda não descrita
nos livros de patologia - permaneceu
imóvel uns momentos.
Depois
empalideceu. Levou as mãos ao abdômen e estorceu-se nas garras de repentina e
violentíssima ânsia.
Ergueu os
olhos para Frei Luiz de Souza e murmurou:
- Luiz!
Luiz! Lamma Sabachtani?!
E morreu.
De que não
sabemos - nem importa ao caso. O que importa é proclamarmos aos quatro ventos
que com Aldrovando morreu o primeiro santo da gramática, o mártir número um da
Colocação dos Pronomes.
Paz à sua
alma.
(1924)
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