Pandeiro de Ouro
Luci Afonso
Os gemidos no quarto de hóspedes
culminaram no grito que acordou todos no apartamento, exceto a mãe surda. As
luzes se acenderam no prédio. O porteiro da madrugada interfonou, perguntando
se devia chamar a polícia ou os bombeiros.
— Não precisa, Sr. Laurentino. Foi só um
susto.
Tia Loíde repreendeu o companheiro:
— Que escândalo é esse, Geraldo?
— Nooooooossa, cê me assustou.
— Eu tive que te acordar. Você não
parava de gemer.
— Tive um pesadelo horrível.
— Com o quê?
— Cê sabe que eu num lembro? Só sei que
era horrível.
— Então volta a dormir, Geraldo, mas
fica quieto.
— Cadê meu pandeiro?
— Está bem do seu lado.
Loíde e Geraldo vieram de Minas para o
lançamento do meu livro. Visitaram o Congresso, a Catedral e o Palácio do Planalto,
onde tiraram fotos com a Guarda de Honra. Depois de almoçar no Setor Comercial,
foram até a Feira do Paraguai, procurar o perfume raríssimo que Geraldo usava. Deram
sorte: acharam o último vidro de Lancaster na banca de uma velhinha coreana.
— Quando ele cansa muito, ele tem
pesadelo — explicou minha tia na manhã seguinte.
— Cê me assustou, uai.
— Ninguém dorme com aquela gemeção, Geraldo.
— Cadê meu pandeiro?
— Está ali na cadeira, não está vendo?
— Minha vista tá meio borrocada, bem.
—Você pingou o remédio?
— Ih, esqueci!
— Traz lá que eu pingo.
Vinte anos mais nova, Loíde cuidava de
Geraldo como de um pai. Distraído, ele se perdia até em casa, confundindo a
porta do banheiro com a da sala, por exemplo. Além disso, só enxergava do olho
esquerdo e tinha a memória fraca.
Geraldo não se separava do pandeiro.
Tocara numa banda durante muitos anos, no Grande Hotel do Barreiro, onde era
conhecido como Pandeiro de Ouro. Aposentado, aceitava qualquer convite. Eu o chamara
para acompanhar meu amigo Nestor ao violão, na noite de autógrafos. Ele
planejava conhecer o pessoal do Clube do Choro, mas descobrimos que estava
fechado devido às férias.
Terminado o café da manhã, sentamos no
sofá para ouvir as novidades de Araxá, isto é, quem tinha casado, morrido ou
separado.
— Geraldo, qual é o nome daquela senhora
do mercadinho?
— Do mercadinho? Cê sabe que eu num sei,
Loíde?
— Dona... Beatriz. Ela teve um infarto.
— Noooooossa! Morreu?
— Não, está em coma.
— Coitada, sô! Tão nova...
— Nova? Noventa e cinco anos é nova,
Geraldo?
— Noventa e cinco? Nooooooossa!
— E o marido tem 41.
— Quarenta e um? Noooooooossa!
— Você não sabe de nada, Geraldo!
— Você ainda cuida do seu neto? —
perguntei, mudando o rumo da conversa.
— Cuido! Dá gosto de ver: ele tá grande,
bonito, inteligente. Só que às vezes ele acorda imbizorrado e não quer ir para
a escola de a pé.
— Imbizorrado por quê, Geraldo? –
interrompeu Loíde.
— Cada hora é uma coisa, sô. Essa semana
foi o jogo que estragou.
— Por que você não manda consertar?
— Pitimbado desse jeito? Cê tá é doida.
Ele vai é assistir TV.
— Coitado, Geraldo!
— Coitado? No meu tempo nem isso tinha.
Ele tá é pegando o boi.
A empregada apareceu na porta da
cozinha, avisando que a comida estava pronta.
Após o almoço, Loíde sugeriu:
— Vai descansar um pouco, Geraldo.
— Mas eu não tô cansado, Loíde.
— Vai logo! Senão você fica uma plasta
mais tarde.
— Já vou, bem! Cadê meu pandeiro?
— Está na sua mão, Geraldo.
A noite de autógrafos foi um sucesso, animada
pelo violão de Nestor e pelo pandeiro de Geraldo. Fomos dormir bem tarde, sem
pesadelos.
Faz anos não escuto a expressão "plasta", uma das preferidas de minha mãe. Eu também uso. Como adorei o Geraldo. Aliás, noooooossssssa, como gostei da crônica!
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