A diarista oportunista
Luci Afonso
— Gerusa?
— Não, não é a Gerusa.
— Ela está?
— Este telefone não é mais da
Gerusa.
— É 5566-7788?
— Esse é o meu telefone.
— Não é da Gerusa?
— Não. Aqui não tem nenhuma
Gerusa.
— Você tem o novo número?
— Não, eu não conheço a
Gerusa.
— Desculpe, foi engano.
Liguei novamente. Poderia mesmo
ter me enganado. A mesma voz atendeu.
Antes que a mulher me xingasse, desliguei rápido.
Gerusa havia sido muito bem
recomendada. A melhor diarista de Brasília, disseram. Agenda lotada o ano
inteiro, encaixe só com bastante antecedência. O problema era encontrá-la.
Eu precisava urgente de alguém
para limpar a casa, lavar a roupa e cozinhar, pelo menos duas vezes por semana.
Num momento de raiva, eu despedira Ceiça por desacato. — Vai pegar mais gato? — ela resmungou quando anunciei que
adotaria Hanna, uma fofurinha branca presente de uma amiga. A empregada já implicava com o Patinha, que ela acusava de encher a casa de
pelos, e não escondia a ojeriza por animais domésticos em geral.
— Diarista é ilusão — disse
tia Afonsina, na visita de domingo. — Além de muito caras, são umas
porcas.
Meu filho começava a protestar:
— Comida congelada, de novo?
— Eventualmente... hã... vamos
ter outra empregada?
— Por que você não aprendeu a
cozinhar?
Já estava sem forças nem
respostas quando bateram à porta.
— Dona Lúci, meu nome é
Solange, eu soube que a senhora está precisando de diarista...
A moça trabalhava no prédio e
fora indicada pelo porteiro. Em curta entrevista, fiquei sabendo que deixara o
emprego anterior porque era obrigada a lavar toda a roupa na mão (A senhora vê que absurdo, Dona Lúci?). Fiz
a pergunta decisiva:
— Você gosta de gatos? — Hanna
acompanhava a conversa, espichada no tapete da sala.
— Adoro! — ela respondeu,
olhando a gatinha, embevecida. — Eu até tenho um!
— É mesmo? Qual é o nome dele?
— ...Xaninho.
Solange usava uma touca branca
com o nome bordado em azul. Depois que fizera o curso de gastronomia no SENAC, se
acreditava exímia chef de cuisine. Sua comida não era ruim. O
problema é que estava sempre um pouco queimada (Suas panelas não são boas, Dona Lúci). Era extremamente
desorganizada. A cozinha lembrava um cenário de guerra enquanto ela fazia o
almoço — os vegetais jaziam decepados sobre a pia, a louça suja se acumulava
como montanhas de detritos num prédio bombardeado. Além disso, fazia uma faxina
apenas razoável e jamais conseguia terminar o serviço.
Também era espaçosa. No
primeiro dia, na minha ausência, pegou o aparelho de som do meu quarto e o
levou para a área de serviço, pois gostava de ouvir rádio enquanto passava
roupa. Ao longo da semana, observei que a gaveta das calcinhas estava mexida e
que os sapatos estavam ligeiramente fora de lugar, como se alguém os tivesse
experimentado.
Eu ia levando até que
aparecesse outra, porém Solange cometeu um erro fatal na sexta-feira da segunda
semana. Enquanto palitava os dentes após o almoço, ela casualmente perguntou:
— A senhora tem contador?
— Como?
— Contador. Eu preciso de uma
declaração de renda.
Acendeu o sinal vermelho. Sou
totalmente a favor dos direitos das empregadas domésticas. Acho justo que
recebam os mesmos benefícios dos outros trabalhadores. Sempre as pago em dia, dou
horário reduzido e concordo que faltem se necessário, sem descontar no salário.
Mas uma diarista que trabalhava para mim há quinze dias falar em declaração de
renda me pareceu levemente ameaçador. A Ceiça, que estava comigo há dez anos,
jamais pedira tal coisa.
Despedi Solange no mesmo dia,
por telefone, como certo presidente da república fazia com seus ministros. Ela
aparentemente se considerava efetivada, pois gritou:
— A senhora é uma tratante,
Dona Lúci! ... E fique sabendo que eu não tenho, nunca tive, nunca terei e odeio
gatos! — e desligou, antes que eu pudesse responder.
Liguei para Ceiça. Ela
concordou em voltar com o dobro do salário, junto com os novos benefícios
previstos em lei. Prometeu tratar bem Hanna, mas não pode vir de imediato: está
no Maranhão, cuidando da mãe doente. Enquanto enrolo meu filho com comida
congelada e fast food, vou tentando
alguns números rabiscados na agenda:
— Gerusa?
— Aqui não...
Delícia de crônica! Eu "vi" a cena! Como também sou ruim de cozinha, sei o que significa ficar sem uma diarista boa. A minha, graças a Deus, adora meus dois cachorros e ainda passeia com eles. Seu jeito de falar do cotidiano é maravilhoso mesmo, Luci!
ResponderExcluirLuci, adorei! Real! do jetio que vc conta, a gente mergulha na história. o dia-a-dia é mesmo assim.rsrs
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