Prefácio à Senhora dos Gatos
Alexandra Rodrigues
Quando
se adentra “Senhora dos Gatos” pela porta do título, tem-se a impressão de ser
apresentado a uma fascinante dama felina que logo arranhará sua alma com as
unhas da escrita. A leitura deste livro poderá
sim riscar o móvel mais polido de suas interioridades. Mas não se iluda o leitor: “Senhora dos Gatos”
irá também roçar silenciosamente a pele da sua sensibilidade, com o pelo farto
da palavra. Em qualquer das situações, ela circulará pela sua casa e demarcará
os espaços, com a independência que é peculiar aos felinos. Mas também como
companheira fiel, em seu território preferido de observação: sensível aos
humores do dia, caçadora de nuances inusitadas, leal companheira que mia e
ronrona ao seu ouvido as ironias do destino de personagens peculiares do seu cotidiano.
Ao
receber “Senhora dos Gatos” experimentei a familiar sensação de estar diante de
uma trilogia que se iniciou com “Velhota, eu?”, se prolongou em “O Guardião da
Manhã” e agora nos brinda com viagens literárias ao mundo humano e felino. Essa
sensação de continuidade — e ao mesmo tempo de conclusão de um ciclo — está
presente no fio que tece a relação entre o título do segundo livro e a crônica
que inicia esta obra: “Assim no Céu como na Terra”. Nela reencontramos Sr. Pernambuco, o velho lavador de carros que,
com sua saudação matinal, tinha o dom de transformar o espírito do dia. Dei-me
conta de que, agora, o guardião da manhã chega ao céu e trava um surpreendente diálogo
com o ajudante de São Pedro e com o próprio santo. Um diálogo que me
transbordou de emoção como raras vezes a primeira página de um livro teve a capacidade de fazer. Ousaria afirmar que,
pela voz da cativante personagem, a autora nos apresenta ao que melhor sabe
fazer:
—
Eu sei alegrar as pessoas que acordam
desanimadas.
As
trinta crônicas deste livro se nutrem de uma
surpreendente variedade de situações e personagens, atravessadas sempre por
algo que surpreende, critica, indaga ou enternece: uma fina ironia aqui, uma
explícita crítica social ali, uma denúncia feita com humor e irreverência, uma delicadeza
sutil, uma dor acolhida na alma, uma explícita declaração de amorosidade.
Se
em “Queria te contar também”, Luci Afonso nos convida a compartilhar a
intimidade epistolar entre primo e prima, é no formato de e-mail que edita a
existência em “A vida é um grande biscoitão”, com os contratempos que lhe são
peculiares e que ganham uma tonalidade humorística pelas mãos da escritora. Desfilei
de olhos úmidos na crônica “Boneca Melindrosa”, diante da quase despedida de
dois amigos surpreendidos com o que a vida pode restituir à vida, e contaminados
por uma vontade irresistível de continuar batucando a existência. Se o humor
descabelado dá o tom ao texto “O cabeleireiro fiel”, em “Doidinha” o corte do
cabelo é utilizado para discutir questões como liberdade e submissão, estética
e juventude, rebeldia e assujeitamento.
Na
crônica “Felis cattus domesticus, L., SRD”, a Senhora dos Gatos exercita seu
instinto maternal por esses bichos. O elo amoroso entre uma mulher e uma gata —
seres que padecem de fragilidades e por meio delas se aproximam — narrado pela
voz do bicho, é abordado em “Gemer, miar, amar”. Já na crônica que dá título ao
livro, a autora revela plenamente suas garras literárias, ao assumir a
identidade felina após ter salvado uma gata, ou ter sido salva por ela: os gestos da mulher se tornaram mansos e
silenciosos, os olhos se acostumaram à escuridão. Nas três crônicas, as
nuances impressionistas do pincel da escrita de “Senhora dos Gatos” são
especialmente reveladoras de uma inequívoca cumplicidade felina.
Senti-me
desafiada, em “Morzinho”, a viver de novo as exigências de metamorfose da linguagem
materna, diante das mutações de um pré-adolescente. Na crônica “Última música” percorri
a paixão de uma mulher pela vida, e em “Probleminha” testemunhei o vínculo
entre aluna e professor, mesmo quando a vida redige seus textos com linhas
tortas, na arte do (des)encontro. No texto “Nunca mais, pra ninguém”, no qual
são reconstruídos fragmentos de tristeza e abandonos, descobri uma
surpreendente e sensível cronologia da felicidade.
Bebi
da seiva profunda da crônica “Esta primavera”. E refiz-me lágrima com a beleza do cântico final desse texto, que
me conduziu a me embrenhar também na
profundidade da terra para implodir meu canto, até que a morte branca do ipê
venha me nutrir de seiva bruta para a próxima estação.
A
criatividade de Luci vai do poema-crônica “Tempus” ao humor com que se atreve a brincar deliciosamente com o divino,
em “Quanto fazer”! Soltei divertidas gargalhadas com a leitura do texto
“Palavrinha ou Palavrão?”, no qual a autora imprime um recado contundente: Doutores de gravata borboleta deveriam
aprender com orangotangos a viver em sociedade.
O
exercício filial do cuidado me aconchegou em “Mão de sopa”, da mesma forma que
em “Mãe-mar” testemunhei a ternura da mãe pela filha, o eterno vínculo amoroso.
Já em “O Velhinho Torto”, a postura
sensível e desenvolta da observadora Luci Afonso, reinaugura, sem saber, a primavera (...).
Por fim, nutri-me de salvamentos na crônica “Restauração”, alcançada pela
emoção, como em raros textos tenho sido nos últimos tempos.
Luci
é, sem dúvida, uma cronista nata que a cada primavera lança novos rebentos em
forma de palavra. Dela brota uma linguagem com requintes de sutileza, que
reinaugura a nossa capacidade de observação, escuta e captura do outro. Impossível
deixar de destacar a sua impressionante competência como antropóloga de
humanidades, além do sensível domínio descritivo de paisagens naturais que bem poderiam ser reconstruídas em pinturas ou em curtas
metragens, tal a precisão do seu detalhamento.
Tenho
a forte impressão de que a escrita de Luci Afonso tece uma linguagem sem aparas:
parágrafos curtos e precisos, com diálogos abundantes e concisos, muitos deles recheados
de interrogações, exclamações e reticências, caracterizam muitas das suas crônicas.
Diálogos que sugerem e respingam na imaginação dos leitores. E no entanto, a escrita de Luci é
profundamente poética! Como ela consegue essa alquimia?
Recuso-me a acreditar que não terei mais notícias de mãe-mar, dos
gatos que nos miam e gemem, do antigo guardião da manhã. Em algum
estacionamento da cidade, no céu ou na próxima encarnação, preciso reencontrar
esse e outros personagens da escrita de Luci Afonso. E desde já desejo
um próximo livro da Senhora dos Gatos!
Alexandra Rodrigues publicou, em 2004, O Nome das
Coisas, e
em 2007, Minha avó
botou um ovo, ambos
pelaThesaurus Editora.
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