Restauração
Luci Afonso
Era daquelas bonecas
antigas, em que se dava corda puxando o fio preso às costas. Os membros de porcelana
estavam trincados, e as pálpebras haviam sido fechadas por uma grossa camada de
resina.
Mãe e Pai a compraram na
feira de antiguidades, junto com outros objetos defeituosos. Tinham paixão em
restaurar coisas quebradas, em trazer à vida o que já não vivia. Nutriam-se de
salvamentos. Alimentavam-se de resgates.
O ateliê de restauro ocupava
o segundo piso do edifício branco, construído na mata virgem, com paredes de
vidro e sobras de madeira nativa. Ao fundo ouvia-se a água fresca do riacho que
margeava o terreno.
Pai estudava os santos
e filósofos. Mãe adorava os deuses egípcios e mostrava sua devoção nos olhos pintados
com um longo traço de kajal preto. O amuleto azul-dourado acima da porta de
entrada acolhia os visitantes e repelia os invasores.
Nos passeios diários, Mãe
conversava com as árvores, enquanto sentia aprofundarem-se-lhe as raízes e
espraiarem-se-lhe os galhos. Às vezes, levitava rumo às folhas mais altas, mas Pai
cuidava para que não se afastasse muito do chão.
Filha foi colocada na
mesa onde se faziam os consertos. Primeiro, trocaram o vestido desbotado por um
branco alvíssimo, com mangas e gola rendadas. Mãe gostava de costurar roupas de
menina. Depois, desembaraçaram o cabelo de náilon e amarraram duas longas
tranças com fitas.
Em seguida, aplicaram
curativos nas partes trincadas. As cicatrizes diminuíram aos poucos, até sumirem
por completo. A porcelana não mais apresentava marcas ou arranhões.
O fio nas costas, totalmente
desgastado, impedia a fala e os movimentos. Foi substituído por um chip de
última geração. Filha passou a ser ativada pela voz de Mãe e Pai, e com o tempo
aprendeu a distinguir outros sons.
Faltavam os olhos. Pai os
benzeu com orações aprendidas dos santos e filósofos. Mãe colheu ramos de
sândalo e preparou o unguento ensinado por Avó para tratar males da visão. Nada
fazia efeito.
Mãe recorreu, então, à
árvore sem nome que habitava um canto da mata. Sentou-se embaixo dela e pediu-lhe
que abrisse um único botão. Esperou três dias, até que uma tímida flor se deu
ao sol nascente. Mãe a apanhou com cuidado, mergulhou-a no riacho e umedeceu os
olhos de Filha.
A resina cedeu lentamente. Primeiro, abriu-se
o olho esquerdo, azul. Depois, o direito, dourado. Os olhos pintados com um
longo traço de kajal preto reconheceram Mãe, Pai e o Mundo.
Era
daquelas bonecas antigas, em que se dava corda. O pé estava quebrado e faltava
um braço. Filha a deixou na mesa do ateliê. Pela manhã, daria início à
restauração.
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