Restauração
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Luci Afonso Era daquelas bonecas antigas, em que se dava corda puxando o fio preso às costas. Os membros de porcelana estavam trincados, e as pálpebras haviam sido fechadas por uma grossa camada de resina. Mãe e Pai a compraram na feira de antiguidades, junto com outros objetos defeituosos. Tinham paixão em restaurar coisas quebradas, em trazer à vida o que já não vivia. Nutriam-se de salvamentos. Alimentavam-se de resgates. O ateliê de restauro ocupava o segundo piso do edifício branco, construído na mata virgem, com paredes de vidro e sobras de madeira nativa. Ao fundo ouvia-se a água fresca do riacho que margeava o terreno. Pai estudava os santos e filósofos. Mãe adorava os deuses egípcios e mostrava sua devoção nos olhos pintados com um longo traço de kajal preto. O amuleto azul-dourado acima da porta de entrada acolhia os visitantes e repelia os invasores. Nos passeios diários, Mãe conversava com as árvores, enquanto sentia aprofundarem-se-lhe as raízes e espra...