Palavrinha ou palavrão?
Luci Afonso
Não sei o que está
acontecendo comigo. Tenho provocado confusão aonde vou: supermercados,
farmácias, lojas, estacionamentos, padarias. Em ônibus, não: não ando de
ônibus. Tampouco no trânsito: não dirijo há dois anos. Quem me vê assim calma,
a voz baixa e contida, os movimentos suaves, a aura zen, não imagina o quanto
posso me tornar belicosa à menor provocação. Que nem jararaca, mansa até ser
pisada.
Não menosprezo ninguém,
principalmente pessoas humildes. Revoltam-me atitudes pedantes ou racistas. Doutores
de gravata borboleta deveriam aprender com orangotangos a viver em sociedade.
Não humilho, não
desacato, mas coisas miúdas me irritam além da conta.
Como ontem, na padaria:
— Aqui o presunto,
senhor — disse a balconista, entregando-me o pacote.
— Do que você me
chamou?
— Desculpe! Aqui o
presunto, senhora.
— Quero também seis
roscas de creme, por favor.
— O quê? — a moça riu
como se tivesse ouvido uma grande besteira.
— Seis roscas de creme.
— Isso não existe,
senhora.
Toda tarde eu comprava
roscas para meu filho naquele mesmo estabelecimento.
— Então, o que é aquilo
ali? — perguntei, a voz ligeiramente alterada, e apontando a prateleira
inferior do balcão.
— Ah, a senhora quer
dizer rosca doce — ela me corrigiu.
A esta altura, o
diálogo chamara a atenção de todos. Os outros balconistas se posicionaram ao
lado da colega para defendê-la. Os clientes aguardavam o desenlace da conversa.
— Pois é, rosca doce. E o que é aquele negócio
amarelo em cima?
— É creme.
— Humm, creme. Então, como podemos chamá-las?
— Roscas... de creme?
— Me dê seis — peguei a
sacola sem dizer obrigado e passei no caixa.
Semana passada, no Extra:
— Esta fila é até dez
itens — avisei ao rapaz que entrou na minha frente, o carrinho cheio. As filas
comuns estavam lotadas.
— Eu não sou cego — ele
respondeu.
— Não é cego, mas é
estúpido. E muito abusado...
— Eu não sabia que hoje
era o Dia do Velho — ele comentou.
— Pois é, também é o Dia
do Palhaço — devolvi, antes de chamar o gerente para cuidar do espertinho.
Acho que cansei de ser
boazinha: bom dia, por favor, boa tarde, com licença, boa noite, desculpe. Não foi
nada, tudo bem, pois não, pode passar. O sorriso escancarado, a gentileza indiscriminada,
a boa vontade extrema.
Hoje sou mazinha. Talvez
seja efeito dos hormônios da maturidade. Quando eles sossegarem, pode ser que
eu volte ao normal.
Consultei duas amigas
sobre o assunto. Uma, que se casou virgem aos cinquenta anos, explicou-me que “nessa idade a gente se solta mais”. A
outra, bem mais jovem, acha que sou muito “inha”
e que por isso as pessoas não me respeitam.
— Solta um palavrão de
vez em quando, p..., e ninguém vai te f... — Como incentivo, ela me emprestou o
Moderno Dicionário Brasileiro de Termos
Obscenos e o livro Palavrinha ou
Palavrão? — Exercitando a Assertividade.
— É do ca... — ela
garantiu.
Depois disso, venho me
soltando e xingando, soltando e xingando, xingando e soltando. Quero ver que
m... vai dar.
Clap, clap, clap, clap! Pois eu não esperei nem a idade, nem os efeitos da menopausa que, graças a Deus, passaram faz uns seis meses, para mandar ninguém a m... ou se f.... (e as reticências são só por sua casa, porque eu escrevo mesmo!). Tenho fama de encrenca, embora não seja metade do que pensam. Mas deixo que pensem, porque todo o mundo freia antes de me falar um desaforo. Eu já teria dito:"As roscas são do que eu quiser que elas sejam. E você está aqui para servir e não pra corrigir cliente". Isso, num dia extremo. Mas tem os dias maquiavélicos... Cara de choro, cabeça baixa da humildade: "Por favor, quem é o gerente aqui? O Senhor? O que é isso? Só porque eu sou uma senhora, essa mocinha me humilha na frente de todo o mundo? Estou até passando mal! Uma cliente antiga como eu, que compra sempre"? (Expressão mágica é essa: que compra sempre). Cansei faz anos de ter pena de quem não tem pena. Resultado? Eu não sei se o mundo está feliz com isso, mas eu estou. Muito! Seja feliz: xingue!
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