Aceita-se




Luci Afonso


Aprendi cedo a fazer trocas. Um silêncio por uma aprovação, um sorriso por um carinho, uma dor por um doce, um dente por um ioiô, um ioiô por uma bicicleta.

Aos sete anos, ganhei de Natal um bambolê e a primeira bicicleta. Não dei importância ao primeiro, mas fiquei fascinada pela segunda. Aprendi a andar nela sozinha, no quintal de terra onde antes morava nosso cachorro louco, que teve de ser morto a tiro de espingarda. Agora o lugar era só meu, e eu aproveitava para fazer coisas escondidas, como levar um tombo após o outro. Até que, num domingo depois da missa, veio a inspiração:
— Meu Deus, se o Senhor não me deixar cair, vou beijar o chão três vezes!
Deus ouviu minha súplica, porque na primeira tentativa me equilibrei o suficiente para pedalar até o muro. Renovei o pedido em voz alta e fui atendida. Gritei, e não caí mais. Ninguém presenciou o milagre, por isso a surpresa foi geral quando, naquele dia mesmo, ainda com o gosto de terra, comecei a me exibir na rua.
A proeza causou inveja no meu irmão Porquinho (alguns o chamavam de Leitão), que passou a roubar a bicicleta para andar com os amigos. Se eu tentava recuperá-la, era recebida a pedradas, que nunca acertavam, mas garantiam o domínio masculino da brincadeira.
Após uma semana, já conformada com o bambolê, estranhei quando Porquinho me procurou com jeito de negociante:
— Você tem um dente mole, né?
— Uai, você quer o meu dente?
— Não, bobona, eu quero é o ioiô.
O molar superior estava quase caindo, mas eu trancava os lábios quando alguém se aproximava com o barbante. Havia, na época, uma campanha da prefeitura para incentivar a extração de dentes de leite: “Um dente por um ioiô”.
— Você me devolve a bicicleta?
— Devolvo.
Na manhã seguinte, entrei na fila que dava voltas na pracinha. Quando chegou minha vez, escancarei a boca e deixei que o homem de branco puxasse o dente. Sangrou sem dor. Chorei de alegria: minha bicicleta estava salva.

Passados quarenta anos, a voz suave da neurologista explica que minha condição vai se agravar com o tempo, mas que há grande esperança de cura com o desenvolvimento das células-tronco embrionárias. Dói sem sangue. Não ganho ioiô. Não há trocas, somente a pedrada certeira de Deus.

 

Comentários

  1. Esta crônica é um arrepio. Ela "dói sem sangue". Beijo imenso.

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  2. Muito boa a crônica, mas será que as células-tronco não servirão como moeda de troca?

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