Sobre a criação literária




Lygia Fagundes Telles

            A Criação Literária

O preço da criação literária seria mesmo o sofrimento? Penso na minha experiência e lembro que justamente nos instantes mais agudos das minhas atribulações eu não consegui escrever uma só palavra. Mesmo depois, na convalescença, se vinha a vontade, faltava a energia, o movimento era apenas da alma. Olhava para a minha mesa como alguém com sede fica olhando um copo d'água: quer beber mas fica rodeando o copo, faz outras coisas antes e embora pense o tempo todo na água, não faz o gesto para alcançá-la. Não sei dizer se os frutos colhidos mais tarde (alguns até doces) teriam vindo dessa figueira-brava.

O Escritor e o Leitor

Nada fácil testemunhar este mundo com tudo o que tem de bom. De ruim. Um mundo grande, que vai além da chácara do vigário. Diante de si mesmo, diante do papel o escritor se sente grande porque sua tarefa é digna. Pode ser corrompido mas não corrompe. Pode ser louco, mas não vai enlouquecer o leitor, ao contrário, poderá até desviá-lo da loucura.

Fragmentos

“Esses fragmentos têm alguma ligação entre si?”, perguntou-me um leitor. Respondi que são fragmentos do real e do imaginário aparentemente independentes mas há um sentimento comum costurando uns aos outros no tecido das raízes. Eu sou essa linha.

Da Criação

Vejo o Menino Jesus do presépio e o seu cheiro é o mesmo da malinha de couro com os cadernos de escola, o estojo de lápis e o lanche embrulhado no papel de pão. A alegria excitante porque proibida: escrever minhas invenções nas últimas páginas do caderno de desenho que era o mais grosso de todos, copiá-las no fim do caderno para ninguém achar, ninguém era a Dona Alzira. O sentimento de pecado e prazer que me tomava quando via os touros cobrindo as vacas no pasto — essa exaltação culposa me possuía ao escrever as histórias nas páginas proibidas. (...)
Na minha inocência, eu já sabia por instinto o que viria a ficar tão claro mais tarde: que a obsessão da permanência é inseparável da criação.




Trechos de “A Disciplina do Amor: Memória e Ficção”, Editora Companhia das Letras, São Paulo, 2010.

Comentários