Parvoíces
Alexandra Rodrigues
Parvoíces do teu primo – foram as primeiras palavras que li no ar, contaminadas ainda de solo lusitano. Estavam escritas em letra familiar num envelope que acompanhava meia dúzia de presentes escolhidos com a ternura de quem muito bem se quer e pouco se encontrara nos últimos anos. Parvoíces, um termo que se infiltrara nos subterrâneos da minha memória. Uma palavra de sentido duvidosamente pejorativo, que navegava pelo oceano de memórias do meu passado. Sabia que era impossível traduzir. Ainda tentei fazê-lo, mas era uma parvoíce traduzir intenções que só fazem sentido na cultura portuguesa. E assim, pus-me a relembrar as parvoíces vividas na última tarde de visita a Lisboa, na esperança de compreender o sentimento que percorre tão inusitado vocábulo.
Eram três horas da tarde de um escaldante domingo de Agosto. Embrenhei-me pelas estreitezas misteriosas de Alfama na direção do saudoso beco das origens, berço de meus pais. Vi-me cercada pelas alturas apertadas de prédios caiados de história, de narrativas que também me pertenciam na distância do tempo. Aqui e ali, em ruas sem passeios que se bifurcavam a cada instante, como a me perguntar por onde você quer realmente seguir?, eu me indagava sobre o destino que levara a história da minha família daquelas vielas lisboetas carregadas de fado para as amplas avenidas de Brasília, onde a vida não mais que seguia em frente, florida de ipês e de memórias.
Já tinha passado a Sé Velha, com suas ameias de castelo medieval, protegendo a antiga cidade; o Largo do Marquês do Lavradio, cujos degraus escuros e íngremes tantas vezes eu subira em direção ao colo aconchegante da tia Carlota; e seguia agora por ruas minúsculas que se estreitavam, cada vez mais, na minha memória. Via-se um morador aqui e ali, como se a vida se tivesse recolhido nas casas antigas de Alfama e eu dependesse, a cada passo, das vielas da memória para avançar em direção ao meu destino. Parecia uma parvoíce perder-me num espaço que, em tempos idos, me fora tão familiar. Mas, à medida que me aventurava por ruazinhas cada vez mais apertadas, e precisava decidir por qual continuar, crescia a desconfiança de que meus pés pisavam um chão quase imaterial: o da Alfama da minha imaginação.
Parei numa bifurcação onde dois minúsculos restaurantes satisfaziam o apetite dos verdadeiros turistas. Perguntar, a estranhos de outras terras, informações sobre a direção do Beco de Lapa, era uma parvoíce. Um único empregado carregando uma bandeja de cervejas não saciaria a minha sede de passado. Mas a memória desbotada de duas recatadas velhinhas, paradas no meio da rua e do tempo, aconselhava-me a seguir pela Rua dos Remédios.
Isso mesmo! Recordava-me bem da tabacaria da esquina dessa rua, onde, em tempos antigos, vozes amigas saudavam meus pais nas visitas que fazíamos às suas origens. Esse lugar sobrevivera no meu imaginário e ressuscitara dos umbrais da memória numa aula de literatura, ao escutar a recitação de um poema de Fernando Pessoa. Agora, A Tabacaria morava lá, dentro da poesia, recatadamente memória, devastadoramente realidade. Uma parvoíce, essa arquitectura de edifícios poéticos, reerguidos pela engenharia da memória!
Cheguei finalmente à rua dos Remédios, por bifurcações que se bifurcavam ainda mais no meu cérebro de menina-mulher, mapeando o lugar da origem de seus ancestrais. Era íngreme e longa a rua, tão longa e íngreme como os caminhos que me haviam afastado daquele lugar, e eu não sabia em qual daquelas vielas deveria virar para entrar no Beco da Lapa. Não sabia nem mesmo se era de verdade esse lugar tão estreito que mal cabia nas minhas reminiscências.
Foi quando me percebi turista no longínquo território da infância. Ainda existiria aquele Beco onde nos natais da nossa infância entrávamos, felizes, para abraçar a tia Leonor e o tio Augusto, brincar com os primos, rever a madrinha? Para comer as deliciosas línguas de gato com um copo de leite morno, antes de deitar? Para nos deliciarmos com as filhozes da avozinha, empilhadas em travessas de louça antiga com bordas azuis? Para sairmos juntos ao Jardim Zoológico, que visitávamos magnificamente sentados em cadeirinhas, lá do alto de um elefante? Para lancharmos na confeitaria Suíça, em pleno Rossio, os melhores doces que a vida nos faria saborear? Que parvoíce ressuscitar lugares de vida há tanto tempo abandonados na Alfama da minha meninice!
Era ali mesmo e eu nem tinha percebido. A tabacaria da esquina já não marcava mais a entrada no Beco da Lapa, mas continuará habitando para sempre a poesia da minha vida. No entanto, na outra esquina, ainda morava - agora transformada num pequeno supermercado - a mercearia que pertencera ao meu avô. Entrei instintivamente, como que para fazer anunciar uma presença que carregava o sangue de quem tinha inventado aquele lugar. Um lugar de intensa labuta da minha avó, de sol a sol, os sete dias da semana, uma herança do trabalho braçal lá na aldeia da Telhada, de onde saíra para Lisboa, como a maior parte das moças dessa época, para ser criada de servir. E serviria a vida inteira, naquela mercearia, onde tudo se vendia a granel, embrulhado em papel de jornal. Um lugar agora travestido de supermercado, com embalagens e sacos de plástico descartáveis.
Saí da mercearia do passado com as mãos carregadas de recordações e virei pela minúscula viela à direita, onde se lia, com a nitidez que a saudade é capaz de entrever: Beco da Lapa. Parecia uma alucinação aquela placa que assegurava a veracidade da miragem do passado. A primeira porta do beco, pintada de verde escuro, com seu batente dourado, era a mesma paisagem do tempo dos meus avós. Inacreditável! Senti uma vontade lacrimejada de segurar o batente que acabara de bater, com força, à porta das minhas reminiscências. Que parvoíce, essa vontade de gritar:
- Oh da casa!...
Aquele degrau de pedra ainda me convidava a subir a interiores que só às minhas memórias pertenciam, não fosse o temor de que a parede da casa da frente, escorada em precárias estruturas de madeira, quisesse desabar por cima de mim. (Era tão minúscula e perigosa a passagem da Rua dos Remédios para o beco da minha infância!).
Chega, que meu coração ficou encurralado no beco do passado! Chega de visitar o chão de outros tempos numa tarde escaldante do verão lisboeta! Chega de querer decifrar uma palavra incrustada no meu passado linguístico! Que parvoíce querer explicá-la numa crônica gestada nas vielas das minhas entranhas lusitanas!
Esta crônica obteve o 1º lugar na Modalidade Prosa do Concurso Literário CANTAR PORTUGAL EM PROSA E VERSO, do Elos Clube de Faro, Portugal, no âmbito das Comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, 2010.
Alexandra Rodrigues nasceu em Lisboa e replantou suas raízes em Brasília. Publicou, em 2004, O Nome das Coisas, e em 2007, Minha avó botou um ovo, ambos pela Thesaurus Editora. Leiam outros textos da autora neste blog.
Merecida premiação. Essa moça poeta consegue acessar a alma dos lugares. Beijos pra você, Luci e pra amiga Alexandra
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