O velhinho torto
Luci Afonso
Há semanas espio o velhinho torto que caminha toda manhã de uma ponta à outra do edifício, indo e vindo, mancando e girando o corpo à esquerda. À tarde, a mesma coisa. Ainda não contei quantas voltas ele dá nem quanto tempo leva, mas sei que o trajeto nunca se altera e jamais ultrapassa os limites da calçada.
É vaidoso: tênis modernos, meias brancas três-quartos, bermuda cáqui de brim, camisa de mangas curtas, cinto de couro marrom. Tem o cabelo bem cortado e a barba benfeita. Quando chove, ele traz o guarda-chuva. Se está frio, veste uma jaqueta jeans; se faz sol, usa óculos escuros. Imagino que tenha um cheiro bom e estou louca para descobrir qual é.
Enquanto espero o táxi, ele conversa com o porteiro. Apuro o ouvido e descubro que se chama Rubens, torce pelo Botafogo e odeia o Arruda. Fala baixo e tem um riso gostoso de menino levado.
Sempre o vejo na fila do caixa no Carrefour — eu na de 10 artigos, ele na preferencial. Embalo as compras devagar para sair depois dele e o sigo até o prédio. Ele anda sem pressa, parando aqui e ali para cumprimentar os conhecidos e observar as árvores.
Hoje nos topamos na parada de ônibus. Discretamente, telefono à chefe avisando que vou me atrasar e, para disfarçar, folheio na prateleira do T-Bone o instigante Relatório 2005 das Atividades da PETROBRAS. Quando o Sr. Rubens acena ao zebrinha, embarco mesmo sem saber o rumo e peço licença para sentar-me ao seu lado, na tentativa de cheirá-lo.
— Acho que moramos no mesmo prédio - diz ele. — Já vi a senhora na portaria.
— É mesmo - respondo, inebriada com o talco Johnson’s que exala do velhinho e que me devolve à primeira infância.
— Vai fazer compras? - pergunta ele, gentilmente.
— ...?
— No Conjunto.
— ...?
— Nacional. É para lá que vamos.
— Ah, é! Preciso comprar um sapato.
— Um ou dois? - ele brinca.
— Dois... E o senhor?
— Vou apertar os parafusos.
— Da cabeça? - nós dois rimos.
— Da perna.
É setembro. O ipê amarelo em frente à varanda está carregado de brotos. As lagartas cumprem o humilde caminho até o céu; as cigarras explodem em canto e o passarinho da chuva dá recitais quase despercebidos. O incansável vizinho marcha, sereno e elegante, para lá e para cá, reinaugurando, a cada passo, a primavera da velhinha torta que o observa da janela do sexto andar.
Que texto gostoso! Então, voltaste, hein? Que coisa boa! Eu estava sentindo muita falta!
ResponderExcluirQue belo retorno. Também estava com saudades... dos escritos e de você.
ResponderExcluirBeijos
Olivia
Que delícia de leitura! Estou aqui sentindo cheirinho de talco e de primavera.
ResponderExcluirTambém fiquei contente com seu retorno!!
Beijos, Juliana.