Querida, Meu Bem
Luci Afonso
Arrasto-me pela casa com roupão branco e chinelos atoalhados, esperando que ela vá embora. Na infância éramos inseparáveis. Depois, afastamo-nos um pouco, mas ela insiste em aparecer de surpresa e em se demorar:
— Vim o mais rápido que pude, Querida.
Meu Bem é sozinha: não tem família, nem amizades, nem bichos de estimação, nem plantas. Quando chega, espalha-se pelos cômodos, revira o quarto, desliga o computador e esconde os óculos para que eu não leia, não escreva, não faça nada além de cuidar dela. O telefone emudece, as persianas se fecham, as violetas murcham. Os gatos param de brincar.
Durmo o dia inteiro para que passe mais rápido, mas ela se deita comigo e quer brincar como antes:
— Lembra?
Ainda não consegui dizer que já estou esquecendo, que agora...
— Lembra? - ela insiste.
— Sim - eu minto, fingindo uma lágrima para deixá-la contente. Ela também chora e diz, já em sonho:
— Que bom!
No dia seguinte, ela se vai sem despedida. Guardo os chinelos, ponho o roupão para lavar, tomo banho e vou pintar o cabelo e as unhas, talvez ambos de vermelho.
Na próxima visita, contarei que tenho outras amigas, que não preciso mais dela. Direi também que sou... — não, isto ainda não consigo admitir nem a Querida, nem a Meu Bem.
(Imagem: "Infância", pastel a óleo de Luci Afonso)
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