Muito além do gênero

Em entrevista exclusiva, Luis Fernando Verissimo fala sobre seu novo romance policial, "Os Espiões"


Luiz Costa Pereira Junior

Luis Fernando Verissimo criou como quem não queria nada uma marca de estilo difícil de imitar: a de tratar cada texto, o mais insignificante bilhete, a crônica mais apressadamente escrita ou o livro mais ambicioso, como peça única a conjugar elegância, criatividade e bom humor.

É combinação notável em quem se fez conhecido, no trato direto, pela timidez e conversa em monossílabos. Fato é que a timidez não o isola do mundo, nem sua crônica padece de contágio do laconismo. Aos 72 anos, com mais de 50 obras, Verissimo une o afiado humor ao refinado senso de observação da vida e da fala brasileiras, manifestos tanto na crônica e no romance como nos quadrinhos e roteiros de TV.

Acha, sem ironia, que a ironia não pega no Brasil. Ao menos por escrito. Para escrever com ironia, diz ele, é preciso ser lido ironicamente. O brasileiro, tão sagaz ao falar, levaria tudo ao pé da letra, e da seriedade, ao escrever.

Leva seus prazeres a sério. Aceitou de imediato integrar uma das mesas do II Festival da Mantiqueira, em São José dos Campos (SP), no fim de maio, só para falar de um ídolo: Edgar Allan Poe, pai do romance policial, gênero do qual o cronista gaúcho é fã de carteirinha. Já criou seis romances do gênero desde 1984 (com Jardim do Diabo), o mais novo deles acaba de sair do forno, Os Espiões, uma paródia aos livros de John Le Carré.

Ele se diz fascinado pelas palavras, mas confia em que um escritor deve encarar o idioma com liberdade. "A gramática precisa apanhar todos os dias para saber quem é que manda", escreveu em O Gigolô das Palavras. Aqui, ele fala da experiência acumulada na expressão em língua portuguesa, a técnica da crônica e do romance policial. E diz que, para escrever com molho, é preciso pensar o mundo com leveza. Sua obra leva isso ao pé da letra.

Se você pudesse resumir a técnica da crônica, como seria?

É difícil dar uma receita, pois a crônica é um gênero indefinido, desde sempre. Você pode falar do que quiser e chamar o que escreveu de "crônica", e o que sair será efetivamente uma crônica. Como sob esse rótulo cabe tudo, há também muito de invenção, muito exercício de estilo. Agora, tirando a grande geração de cronistas, como Rubem Braga, Antonio Maria e Paulo Mendes Campos, não sei se o termo "crônica" caberia ao que se escreve hoje com esse nome. A crônica que eles faziam estava mais perto do lírico, sem ser alienada. Hoje em dia, o que se escreve como "crônica" é muito mais factual do que antes. Paulo Mendes Campos podia fazer crônicas que eram genuínas peças literárias, o próprio Rubem Braga escrevia um tipo de texto com aquele seu jeito despojado, mas ainda assim lírico. Hoje, a ênfase do que se lê por aí é comentar, é testemunhar o momento.

Com o que você mais se preocupa quando vai escrever uma crônica?

Busco, quando posso, imprimir certa variedade ao material, seja na maneira de escrever ou na abordagem. Mas tudo depende de ter ou não tempo para pensar muito sobre um assunto. Às vezes, há questões obrigatórias no ar. Fora essas, traço o tema que me ocorre. Já houve tempo em que me era indiferente a dificuldade de encontrar o tema de uma crônica ou as observações que dão molho a ela. Mas, ultimamente, tem sido cada vez mais complicado encontrar o tema sobre o qual falarei. Tenho a impressão de que tudo já foi escrito, tudo já foi dito. Tenho, nessas horas, certa hesitação. Sempre.

Como vencer o desafio de escrever "com molho"?

Podemos abordar qualquer tipo de assunto, desde que com leveza. Mas a ironia é sempre perigosa no Brasil, pois nem sempre é entendida. Ser "irônico, brasileiramente" é o sujeito escrever com ironia, mas não ser lido com ironia. Falando, o brasileiro diz que uma mulher feia é bonita, quando de fato ela é horrorosa. Mas, por escrito, sem muita habilidade, o comentário passa por verdade. É lido como tal. Parece que a ironia no Brasil não funciona por escrito. Pois há uma certa reverência com a palavra impressa, uma ideia difusa de que está ali no papel um preto no branco que, decerto, não pode ser brincadeira. Mas o importante, no fim, é escrever com leveza.

Haveria relação entre literatura e música, dois campos que você domina?

Uma vez tentei fazer um paralelo entre a crônica e o jazz. Afinal, ambos expõem seu tema, mas há as variações do tema e a volta ao tema principal. Mas, no fundo, não vejo relação. Na música, deve-se ser mais espontâneo, coisa que na escrita não se dá tanto, pois se pode voltar atrás e revisar o que se fez.

Como é sua rotina? Escreve todo dia a uma mesma hora; é indisciplinado?

Sou muito desorganizado. Para meu trabalho render, tudo depende da obrigação do dia. Divido a obrigação de escrever três textos por semana, para (os jornais) Zero Hora, O Globo e Estadão, com outras demandas.

Como a do novo romance, imagino. Com este, você criou seis livros policiais. O que o atrai no gênero?

O romance policial é sempre uma leitura atraente. Se há um crime e uma investigação, sempre é possível "prender" o leitor. De certa maneira, o primeiro passo de um livro, que é o contato com o leitor, já está contido na ideia de espiar os passos dados até a solução de um mistério.

Há algo ainda a ser tentado em romances policiais que já não o foi?

Quem escreve um romance policial escreve um gênero antigo, tentando sempre encontrar uma maneira nova de escrever. Quando fiz Clube dos Anjos, tentei algo. O leitor sabe, desde a primeira página, quem é o assassino; então o ponto de desenvolvimento do livro foi desvendar o motivo. Mas não há muito o que ser inventado desde que (o romancista Edgar Allan) Poe inventou o gênero. Ao inventá-lo, ele também já esgotou todas as variações. A que mais me encanta é a do narrador não confiável, aquele que conta a história, mas mente o tempo inteiro para o leitor.

Além de um crime, é claro, o que necessariamente um romance deve conter para ser considerado policial?

Na verdade, todo romance é uma espécie de investigação, é um desvendar por meio de uma história, há sempre um mistério, que pode estar todo contido numa mesma personalidade. Todos os livros são policiais, alguns com crime, outros não. A distinção do gênero é apenas conter o policial e a vítima, a investigação e a solução.

Mas você não vê algum tipo de evolução no jeito de escrever policiais desde Poe?

Há as maneiras humorísticas, por exemplo, e muitas das tentativas de romances policiais são paródias. Há também as mais pretensiosas, que tentam transformar o gênero em algo maior. Esses tipos de variações dialogam com as duas tradições clássicas. A europeia, em particular a inglesa, ambienta suas histórias muitas vezes numa cidade do interior com um crime desvendado pela capacidade dedutiva do investigador. A americana já traz o detetive particular, é mais violenta e ácida que a europeia e o investigador chega à solução do crime por meio da ação.

Você reconhece em sua obra policial alguma influência decisiva de outros autores?

A tradição europeia, em especial. Criei um personagem que é uma sátira a essa linha europeia, que é o Ed Mort. Parodiar o estilo europeu por meio dele foi uma homenagem que me deu prazer.

Sobre o que trata o novo romance?

Busquei fazer um livro de espionagem ao estilo de John Le Carré. Daí o título temporário de Os Espiões. Ele fala de dois espiões amadores que fazem uma incursão a uma cidade do Rio Grande do Sul, de nome fictício: Formosa. Um deles trabalha numa editora quando recebe originais que despertam seu interesse e resolve investigar com um amigo quem foi que mandou o original. O narrador é um grande admirador do Le Carré e gosta de escrever como ele. Mas a personagem, na verdade, é apenas provinciana. A espionagem numa cidade do interior, as trapalhadas e as ciladas da vida interiorana fazem a trama se desenvolver. O livro é quase uma paródia ao livro de espionagem típico.

Você costuma ter a ideia inteira planejada antes de começar a escrever ou a cria à medida que escreve?

No caso deste livro, eu tinha a ideia geral da história, mas não, não costumo criar antes e escrever depois. Normalmente parto de uma ideia muito genérica do que quero e deixo o ato de escrever entrar pelos seus naturais desvios. Com isso, a ideia original muda muito ao longo do processo. Para você ter uma noção, em abril, faltavam dois ou três capítulos para eu concluir o livro, mas ainda não tinha um final definido.

O brasileiro já usou o idioma como argumento contra Lula em eleições. O que mudou? Lula melhorou ou o país não liga mais para esse tipo de coisa?

Grande parte da rejeição histórica que ele sofreu é puro preconceito social, evidente por meio da linguagem. O Lula líder sindical já dominava o português que lhe servia como luva para comunicar-se com uma massa e, já nessa época, o país sobrevalorizava o problema. Existe uma linguagem de elite e uma popular, há um contraste muito grande, e a própria reação histórica à maneira de falar de Lula é evidência disso. Tivemos presidentes doutores que, sem errar concordância, construíram o país mais desigual e injusto do mundo.

O estudo da gramática ajuda (ou atrapalha) a formação de um escritor?

Todo escritor tem de ter uma base, mas não pode ser prisioneiro dela, precisa escrever com liberdade. Eu, de minha parte, tenho muitas dúvidas de português, mas nada que me impeça o ofício. Ainda não aprendi, por exemplo, como usar o verbo "haver", saber qual a flexão do verbo, qual a concordância a ser usada em cada caso. Na dúvida, simplesmente busco não usar o verbo "haver". Não sofro por isso.

(Revista Língua Portuguesa, nº 44, junho de 2009)

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