O lavador de carros e a escritora
Personagem
Lavador de carros na Câmara, Clodoaldo Paulino inspirou servidora a escrever um livro
Lavador de carros na Câmara, Clodoaldo Paulino inspirou servidora a escrever um livro
O dia em que um homem humilde inspirou uma cronista. Esta história virou um livro
Marcelo Abreu
Fotos: Gustavo Moreno/CB/D.A Press
Sem poder mais trabalhar, Clodoaldo, ou “seu” Pernambuco, 81, é personagem que dá nome ao livro da cronistaFotos: Gustavo Moreno/CB/D.A Press
Luci Afonso, servidora da Câmara, 49, lança o segundo desafio: escrever sobre uma gente diariamente invisível
Tem gente que gosta de gente. E sabe observar gente. Tem gente que faz de gente aliado. Tem gente que verdadeiramente se importa com gente. Era uma vez um homem que lavava carros. E uma mulher que todos os dias estacionava o seu veículo no lugar onde aquele homem lavava carros. Ele tem 81 anos. Ela, 49. A cada reencontro, ele dizia a ela, com voz grave de barítono: “Bom-dia, madame!” Ela lhe devolvia: “Bom-dia, seu Pernambuco...” Ele perguntava pela família dela. Ela dizia que estava tudo bem. Ele, então, antes que ela partisse, lhe desejava que Deus a acompanhasse. Ele continuava lavando carros. Ela subia para o trabalho. Foi assim durante os últimos 23 anos.
Há cinco meses, o homem que lavava carros adoeceu. Veio tudo junto: diabetes, hipertensão e problemas renais muito graves. Foram 23 dias na UTI do hospital de Samambaia. O médico o desenganou. Chamou a família. E lhes contou a verdade. O estacionamento do anexo da Câmara Federal, próximo ao Supremo, desde aquele dezembro, ficou sem a alegria daquele homem miudinho com voz de samurai. A mulher cujo carro ele lavava sentiu sua falta. Não da lavagem. Mas do bom-dia que se apagou.
No hospital, o homem se rebelou. Saiu do coma. Deixou aquela gente de jaleco branco incrédula. Partiu da UTI. Seguiu para casa. Quer voltar para o estacionamento da Câmara. E chora quando sente que não tem mais forças para fazer o que fazia antes. Na 313 Norte, num apartamento confortável, a mulher escrevia. De tanto observar gente, ela começou a escrever sobre gente. Às vezes, ela mesma era a protagonista das histórias que contava. Noutras, na grande maioria, eram as ‘gentes’ com quem esbarrava que viravam seus personagens principais.
Um dia, de tanto ouvir aquele bom-dia com “voz de samurai”, ela escreveu uma coisa pra ele. Chamou-o de O Guardião da manhã. Era uma crônica. “Para mim, eram apenas observações das coisas que aconteciam e eu presenciava”, ela conta. De observação em observação de gente comum, invisível, uma gente que ninguém vê, ela encheu o computador de anotações. Mas só descobriu que fazia crônica quando participou da oficina de literatura, no Espaço Cultural da Câmara, onde trabalhava como taquígrafa.
Há dois anos, pariu o primeiro livro: Velhota, eu? Em 2005, no estacionamento de um banco, no final da Asa Norte, ela foi chamada por um rapaz “musculoso, de braços fortes e tatuado com dragões” de velhota. “Me senti envergonhada. Tinha 45 anos, cinco meses e dez dias”. Válvula de escape: a escrita. Correu pro computador e escreveu tudo que estava sentindo. “O que não consigo responder, escrevo. É assim que reajo.”
O primeiro livro, lançado em 2007, com economia própria, foi um sucesso. O poeta Marco Antunes, professor da cronista, na oficina de literatura, escreveu, na contracapa do livro: “É crônica tudo aquilo que for manchete na alma do cronista. Desabem sobre o mundo as torres da insensatez humana, para o cronista, no entanto, sem traumas ou vergonha, a grande notícia do dia pode ter sido a morte de um simples quati, na garagem do seu prédio”. E disse mais: “Ela tem olho clínico para a hipocrisia social e a delata sem cerimônias ou lubrificações de eufemismos....” A taquígrafa finalmente entendeu que era uma cronista.
Mesmo sonho
Tem gente que gosta de gente. E sabe observar gente. Tem gente que faz de gente aliado. Tem gente que verdadeiramente se importa com gente. Era uma vez um homem que lavava carros. E uma mulher que todos os dias estacionava o seu veículo no lugar onde aquele homem lavava carros. Ele tem 81 anos. Ela, 49. A cada reencontro, ele dizia a ela, com voz grave de barítono: “Bom-dia, madame!” Ela lhe devolvia: “Bom-dia, seu Pernambuco...” Ele perguntava pela família dela. Ela dizia que estava tudo bem. Ele, então, antes que ela partisse, lhe desejava que Deus a acompanhasse. Ele continuava lavando carros. Ela subia para o trabalho. Foi assim durante os últimos 23 anos.
Há cinco meses, o homem que lavava carros adoeceu. Veio tudo junto: diabetes, hipertensão e problemas renais muito graves. Foram 23 dias na UTI do hospital de Samambaia. O médico o desenganou. Chamou a família. E lhes contou a verdade. O estacionamento do anexo da Câmara Federal, próximo ao Supremo, desde aquele dezembro, ficou sem a alegria daquele homem miudinho com voz de samurai. A mulher cujo carro ele lavava sentiu sua falta. Não da lavagem. Mas do bom-dia que se apagou.
No hospital, o homem se rebelou. Saiu do coma. Deixou aquela gente de jaleco branco incrédula. Partiu da UTI. Seguiu para casa. Quer voltar para o estacionamento da Câmara. E chora quando sente que não tem mais forças para fazer o que fazia antes. Na 313 Norte, num apartamento confortável, a mulher escrevia. De tanto observar gente, ela começou a escrever sobre gente. Às vezes, ela mesma era a protagonista das histórias que contava. Noutras, na grande maioria, eram as ‘gentes’ com quem esbarrava que viravam seus personagens principais.
Um dia, de tanto ouvir aquele bom-dia com “voz de samurai”, ela escreveu uma coisa pra ele. Chamou-o de O Guardião da manhã. Era uma crônica. “Para mim, eram apenas observações das coisas que aconteciam e eu presenciava”, ela conta. De observação em observação de gente comum, invisível, uma gente que ninguém vê, ela encheu o computador de anotações. Mas só descobriu que fazia crônica quando participou da oficina de literatura, no Espaço Cultural da Câmara, onde trabalhava como taquígrafa.
Há dois anos, pariu o primeiro livro: Velhota, eu? Em 2005, no estacionamento de um banco, no final da Asa Norte, ela foi chamada por um rapaz “musculoso, de braços fortes e tatuado com dragões” de velhota. “Me senti envergonhada. Tinha 45 anos, cinco meses e dez dias”. Válvula de escape: a escrita. Correu pro computador e escreveu tudo que estava sentindo. “O que não consigo responder, escrevo. É assim que reajo.”
O primeiro livro, lançado em 2007, com economia própria, foi um sucesso. O poeta Marco Antunes, professor da cronista, na oficina de literatura, escreveu, na contracapa do livro: “É crônica tudo aquilo que for manchete na alma do cronista. Desabem sobre o mundo as torres da insensatez humana, para o cronista, no entanto, sem traumas ou vergonha, a grande notícia do dia pode ter sido a morte de um simples quati, na garagem do seu prédio”. E disse mais: “Ela tem olho clínico para a hipocrisia social e a delata sem cerimônias ou lubrificações de eufemismos....” A taquígrafa finalmente entendeu que era uma cronista.
Mesmo sonho
Uma lesão por esforços repetitivos (LER) afastou a cronista de suas funções de taquígrafa. Ela mudou de departamento. Desde setembro do ano passado, está lotada no Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento da Câmara (Cefor). E nunca deixou de ver o lavador de carros. E ele, todos os dias, lhe desejava que Deus a acompanhasse. Essa é a história de Luci Afonso de Oliveira, a escritora, e um de seus melhores personagens, o lavador de carros Clodoaldo José Paulino, mais conhecido como “seu Pernambuco”.
Seu Pernambuco, na verdade, nasceu no Rio Grande do Norte. “Esse apelido me deram quando eu fui servir o Exército no Rio de Janeiro”, conta o homem de 81 anos. A escritora, mineira de Araxá, chegou a Brasília em 1971, aos 11 anos de idade. Veio com pai, mãe e três irmãos. Brasília começava. E Taguatinga foi o endereço da família humilde. A menina cresceu. Escrevia, sem pretensão, coisas que observava pelo caminho. Formou-se em letras pela Universidade de Brasília. Fez concurso para a Câmara, em 1985. Mudou-se para o Plano Piloto. Casou-se. Teve um filho. Separou-se.
Naquele estacionamento, Clodoaldo, sem saber ler e escrever, lavava carros. “Não sei nem assinar meu nome. Escola era coisa de gente rica”, ele diz. No Rio de Janeiro, depois que deixou o Exército, virou vigilante de obras. Trabalhou em Copacabana e Botafogo. Encantou-se pela Cidade Maravilhosa. Apreciava uma dose de pinga. Um dia, ouviu falar que JK iria construir a nova capital. Não pensou duas vezes. Partiu para o cerrado, em 1959. Aqui, no mesmo ano, juntou sua vida com a vida de Ledroneta, mineira de Patos de Minas, que, separada, sustentava sozinha dois filhos.
Clodoaldo e Ledroneta acreditaram no sonho de Juscelino. Aqui, tiveram mais três filhos. Ele virou vigia de obras. Foi o que fez a vida toda, até se aposentar, com um salário mínimo. Perto dos 60 anos, virou lavador de carros, na Câmara dos Deputados. Ganhou um crachá, com foto e tudo mais. Lá, escreveu-se: “Lavador de autos, sem vínculo empregatício com a CD”. Sentiu-se importante. Tempos depois, levou o filho Ailton, para seguir o mesmo ofício. Depois, o neto Washington.
Do governo, há mais de 15 anos, ganhou um lote em Samambaia, numa das últimas quadras. Levou uma década para construir a casa dos sonhos — dois quartos, sala, banheiro, cozinha e paredes toda de cerâmica decorada. Encheu-a com os netos e bisnetos. Na rua, todo mundo sabia que ele lavava carros no estacionamento da Câmara. “O povo do comércio, de tanto confiar nele, vende até fiado. Todo mundo gosta do meu pai”, conta, emocionada, a filha Sônia Paulino, 40.
Sem dizer o nome
Seu Pernambuco, na verdade, nasceu no Rio Grande do Norte. “Esse apelido me deram quando eu fui servir o Exército no Rio de Janeiro”, conta o homem de 81 anos. A escritora, mineira de Araxá, chegou a Brasília em 1971, aos 11 anos de idade. Veio com pai, mãe e três irmãos. Brasília começava. E Taguatinga foi o endereço da família humilde. A menina cresceu. Escrevia, sem pretensão, coisas que observava pelo caminho. Formou-se em letras pela Universidade de Brasília. Fez concurso para a Câmara, em 1985. Mudou-se para o Plano Piloto. Casou-se. Teve um filho. Separou-se.
Naquele estacionamento, Clodoaldo, sem saber ler e escrever, lavava carros. “Não sei nem assinar meu nome. Escola era coisa de gente rica”, ele diz. No Rio de Janeiro, depois que deixou o Exército, virou vigilante de obras. Trabalhou em Copacabana e Botafogo. Encantou-se pela Cidade Maravilhosa. Apreciava uma dose de pinga. Um dia, ouviu falar que JK iria construir a nova capital. Não pensou duas vezes. Partiu para o cerrado, em 1959. Aqui, no mesmo ano, juntou sua vida com a vida de Ledroneta, mineira de Patos de Minas, que, separada, sustentava sozinha dois filhos.
Clodoaldo e Ledroneta acreditaram no sonho de Juscelino. Aqui, tiveram mais três filhos. Ele virou vigia de obras. Foi o que fez a vida toda, até se aposentar, com um salário mínimo. Perto dos 60 anos, virou lavador de carros, na Câmara dos Deputados. Ganhou um crachá, com foto e tudo mais. Lá, escreveu-se: “Lavador de autos, sem vínculo empregatício com a CD”. Sentiu-se importante. Tempos depois, levou o filho Ailton, para seguir o mesmo ofício. Depois, o neto Washington.
Do governo, há mais de 15 anos, ganhou um lote em Samambaia, numa das últimas quadras. Levou uma década para construir a casa dos sonhos — dois quartos, sala, banheiro, cozinha e paredes toda de cerâmica decorada. Encheu-a com os netos e bisnetos. Na rua, todo mundo sabia que ele lavava carros no estacionamento da Câmara. “O povo do comércio, de tanto confiar nele, vende até fiado. Todo mundo gosta do meu pai”, conta, emocionada, a filha Sônia Paulino, 40.
Sem dizer o nome
Na terça-feira à tarde, o Correio foi conhecer “seu Pernambuco”. E saber quem era, afinal, aquele homem que havia encantado a cronista. Ele contou a vida dele. Comoveu-se com as lembranças. Na segunda-feira, ajeitou-se todo, pegou um ônibus e chegou ao estacionamento da Câmara. Viu o lugar onde trabalhou por 23 anos. “Eu gosto muito dali, mas o médico disse que eu não posso mais fazer isso”, lamentou.
Ele e a escritora se falavam todos os dias. Ele a chamava de ‘madame’. Ela, de ‘seu Pernambuco’. Nunca um soube o nome verdadeiro do outro. Era apenas um detalhe que nunca impediu a aproximação. “O nome é Clodoaldo? Poderia imaginar qualquer um, menos esse”, disse-me ela, na manhã de ontem, no seu apartamento confortável da 313 Norte. “Oxente, a madame é Luci?”, indagou-me ele, na terça. Ainda assim, Luci o percebeu, mesmo invisível. Escreveu sobre suas virtudes e o bem que ele fazia a ela. Pariu o segundo livro, com ajuda do Fundo de Apoio à Cultura (FAC), do GDF. Com a história do lavador de carros que nunca aprendeu a dirigir, elegeu sua obra.
Visivelmente emocionada, a escritora, amante de Rubem Braga e Adélia Prado e também pintora nas horas vagas, confessou: “Escrevo para manter o meu equilíbrio, pra me sentir viva”. E admitiu: “Choro por tudo. Amanhã (hoje, no lançamento), sei que vou chorar muito”. Na casa humilde de Samambaia, a filha leu a crônica para o pai que não sabe ler. Os olhos dele se encheram de lágrimas. Ela também se comoveu e constatou: “Se todo mundo tivesse a humildade dele, o mundo não seria assim”. Clodoaldo — ou seu Pernambuco — apenas ouviu. Deu um sorriso desajeitado, quase envergonhado por ainda ser bom — e honesto — num mundo tão mau.
Ajeitou o velho chapéu que o protegia no estacionamento. E ainda sonha, aos 81 anos: “Queria voltar ao trabalho. Gosto de lavar ‘meus’ carros’”. A escritora descobriu aquela vida que esteve sempre ali e ninguém viu. Isso, em toda a sua obra, já teria sido sua melhor crônica.
NÃO PERCA
Ele e a escritora se falavam todos os dias. Ele a chamava de ‘madame’. Ela, de ‘seu Pernambuco’. Nunca um soube o nome verdadeiro do outro. Era apenas um detalhe que nunca impediu a aproximação. “O nome é Clodoaldo? Poderia imaginar qualquer um, menos esse”, disse-me ela, na manhã de ontem, no seu apartamento confortável da 313 Norte. “Oxente, a madame é Luci?”, indagou-me ele, na terça. Ainda assim, Luci o percebeu, mesmo invisível. Escreveu sobre suas virtudes e o bem que ele fazia a ela. Pariu o segundo livro, com ajuda do Fundo de Apoio à Cultura (FAC), do GDF. Com a história do lavador de carros que nunca aprendeu a dirigir, elegeu sua obra.
Visivelmente emocionada, a escritora, amante de Rubem Braga e Adélia Prado e também pintora nas horas vagas, confessou: “Escrevo para manter o meu equilíbrio, pra me sentir viva”. E admitiu: “Choro por tudo. Amanhã (hoje, no lançamento), sei que vou chorar muito”. Na casa humilde de Samambaia, a filha leu a crônica para o pai que não sabe ler. Os olhos dele se encheram de lágrimas. Ela também se comoveu e constatou: “Se todo mundo tivesse a humildade dele, o mundo não seria assim”. Clodoaldo — ou seu Pernambuco — apenas ouviu. Deu um sorriso desajeitado, quase envergonhado por ainda ser bom — e honesto — num mundo tão mau.
Ajeitou o velho chapéu que o protegia no estacionamento. E ainda sonha, aos 81 anos: “Queria voltar ao trabalho. Gosto de lavar ‘meus’ carros’”. A escritora descobriu aquela vida que esteve sempre ali e ninguém viu. Isso, em toda a sua obra, já teria sido sua melhor crônica.
NÃO PERCA
O Guardião da Manhã será lançado hoje, às 19h30, no auditório do Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento (Cefor), da Câmara dos Deputados. Os textos serão apresentados pelo ator Jones Schneider. As crônicas serão “servidas” ao público acompanhadas de músicas de Renato Russo, com interpretação de Alex Souza. O livro custa R$ 20. Contato: 9556-4541
(Matéria publicada no Caderno Cidades, do jornal Correio Braziliense, em 28.05.09)
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