Senhorita



Luci Afonso

31 de dezembro de 1958. Noite de gala no Grande Hotel Thermas do Barreiro. O rapaz alto e magro se aproxima da mesa num elegante terno branco, o cabelo preto engomado com brilhantina. É o homem mais bonito do baile. Ela está deslumbrante no vestido de crepe vermelho, o coque preso por uma tiara, os dentes branquíssimos realçados pelo batom na mesma cor da roupa.

Observam-se discretamente desde o começo da festa, mas só agora ele toma coragem para convidá-la.
— Senhorita, quer me dar o prazer de sentir o calor de seus braços?

Ela estende a mão direita, mostrando o anel de brilhantes que ganhou do pai no aniversário de quinze anos. O moço a conduz gentilmente ao centro do salão e a enlaça com delicadeza pela cintura, mantendo a distância respeitosa exigida à época.

— Qual é a sua graça? - ele pergunta, antes de iniciar a valsa.
— Vera Lúcia - ela responde, já apaixonada pelo desconhecido de fala mansa e gestos serenos.

José, apelidado de Patesco em homenagem ao famoso jogador do Botafogo na década de 40, tem paixão pelo futebol. É atacante no melhor time local e coleciona troféus de campeonatos vencidos nas redondezas. Concluiu o tiro-de-guerra e agora trabalha no comércio da família.

Verinha é filha de um grande fazendeiro. Acaba de se formar na Escola Normal e está entre as beldades mais cobiçadas da pequena cidade.

O lindo casal gira pelo salão, sob o olhar invejoso dos outros pares.

1º de julho de 1959, Igreja Matriz. O matrimônio de José e Vera Lúcia é o principal assunto das colunas sociais nas semanas seguintes. “Magnífico enlace”, dizem as manchetes.

Passam-se cinquenta anos. Patesco e Verinha moram numa casa humilde num bairro afastado. O dinheiro se foi, a saúde, também. Os filhos se revezam no cuidado com os pais. Ela quase não sai, acometida pela esclerose que lhe exige repouso e que, às vezes, lhe rouba a lucidez. Ele gosta de encontrar os amigos na praça, pela manhã, para discutir futebol. Seu grande orgulho é o neto mais velho, que lhe segue os passos de atacante.

1º de julho de 2009. A família se reúne para comemorar as bodas de ouro e só vai embora ao anoitecer. Na casa silenciosa, o marido senta-se na beira da cama, desperta a mulher com um leve beijo no rosto e lhe diz ao ouvido:
— Senhorita, quer me dar o prazer de sentir o calor de seus braços?

Ela reconhece, por um breve instante, o moço bonito no terno branco. Ajeita o penteado, desamarrota o vestido e dá a mão ao cavalheiro.

— Qual é mesmo a sua graça? - ele brinca.
— Vera... Lúcia... - ela diz, num esforço de memória.

O belo casal rodopia pelo quarto, sob o olhar comovido dos anjos.

(Imagem: Dark Beauty, Charles Lidderdale)

Comentários

  1. Luci
    Que coisa mais delicada!Me senti com o coração tocado.
    Obrigado
    Edward

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  2. Essa é daquelas crônicas que dá vontade de sentar na calçada e chorar. É lindaaaaaa... de uma leveza como a borboletas dos igarapés da minha terra
    Olivia Maia

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  3. Oi Luci, Me senti da mesma forma que a Olivia. Fiquei muito emocionado ao ler Senhorita. Você trouxe a minha memória algumas visitas que fiz a Araxá a partir de 1974. Ahhh... o velho Barreiro! Que requinte! Quantos hóspedes ilustres passaram por ali. Quantas lembranças maravilhosas. Que carnaval sensacional! O melhor que tive na minha vida. Que saudades do Fabinho (Afonso de Almeida). Da sopa quente reparadora do desgaste da noite, tomada às cinco da manhã. Dos banhos e até das águas sulfurosas (iéqui!), dos doces enrolados em palhas de milho. Tudo isso sem assaltos, sem brigas, sem sequestros, etc. Tempo bom, tempo de paz. Que saudades! Obrigado, Vander Gontijo.

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