A sedução da palavra


Affonso Romano de Sant’Anna

“Mas com um escritor a coisa é diferente. Além de a obra ser um veículo, um meio, ela também é um fim em si mesma. Ou seja: ela tem uma finalidade estética, artística, histórica e social. O escritor está voltado fundamentalmente para a questão da linguagem. E é no trato com a frase, com os recursos estilísticos e expressivos, que ele vai aprendendo a reconstruir-se a si mesmo e a refletir sobre o mundo.”

“Estou convencido de que o bom texto literário não suporta mentiras. Estou convencido de que o melhor texto literário é aquele no qual o autor expõe o que ele tem de mais essencial, sem se deixar trair, esfriar ou seduzir pelos efeitos da simples técnica. (...) A mim me fascina muito este fenômeno: o da paixão que se converte em linguagem e que comove o outro, apesar mesmo das impurezas técnicas que o texto possa ter.”

“É que o escrever, assim como o pintar ou o trabalhar numa atividade qualquer, pode virar uma segunda natureza. O escritor verdadeiro é aquele que converte todas as sensações e pensamentos em linguagem. É aquele que acaba sempre pensando: ah, isto daria um poema, isto daria um romance. O mundo lhe vem filtrado através das palavras. E se não se expressa por meio delas, sente um mal-estar, uma falta de apreensão da realidade.”

“E o ato de ir escrevendo é um ato de construção. Por intermédio dele é que o autor vai descobrindo o que pensa. É isto: a escrita viabiliza o conhecimento de si e do mundo. (...) Por isto é que escrever é um ato de criação, uma epifania.”

“... Agora, se me perguntarem qual o ato de escrever que mais me fascina, eu digo: aquele por meio do qual o escritor está tentando entender-se a si mesmo e o seu papel dentro da comunidade. Nesse caso, a escrita é um gesto de autoconhecimento, mas também de explicação da realidade social. É necessário que haja escritores que tenham um projeto literário e existencial e que dramatizem na sua escrita o consciente e o inconsciente seu e o alheio. Nesse caso, a literatura é um sonho, é um mito, é um produto de utilidade pública historicamente necessário.”

“Por outro lado, o ato de escrever é um momento de tensão. (...) Como é um mergulho no que o sujeito tem de mais profundo, é um gesto temerário. Em geral, paradoxalmente, o autor faz tudo para evitar que isto aconteça. (...) fica por ali remanchando, fingindo que não é com ele, disfarça, pega um objeto, sai, levanta, toma água, inventa um telefonema, corta as unhas, olha uma revista, vai à janela, etc. É que ele sabe que na hora em que começar, vai entrar numa relação vital com suas forças não visíveis. Ele sabe que aquele é um ato de entrega, como um ato sexual, como um arrebatamento místico. Sucede então que, no momento da escrita, realmente a temperatura do corpo se modifica, a cabeça lateja e o coração dispara... O autor respira fundo, tenta fugir, ou diminuir a tensão, como se estivesse querendo se entregar-evitar-e-prolongar ao mesmo tempo o orgasmo da criação... Há um esgotamento químico e orgânico, que é a marca de um transe existencial.”


(Trechos do livro “A Sedução da Palavra”, Affonso Romano de Sant’Anna. Letraviva, Brasília. 2000)

Comentários

  1. Olá Lúcia! Encontrei este texto por pesquisa google. Achei ótimo! Depois desse momento maravilhoso de reflexão, estou certo de que irei adiquirir esta obra! Parabéns pelo blog. Abraços

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