O batismo do livro



Braulio Tavares

Ao nomear uma obra, além da relação entre título e conteúdo, deve-se ter em mente a clareza do nome escolhido, para não decepcionar o leitor.

Dar título a um livro é como dar nome a uma pessoa, com a diferença de que os nomes são geralmente escolhidos dentro de um repertório já existente. Mesmo com a tendência brasileira para inventar nomes exóticos (Wandergleyson, Carlúcia, Keirrison ou Francicleide, por exemplo), a maioria dos nomes vem desse "dicionário coletivo". Já o nome de um livro tem que ser inventado pelo autor e precisa necessariamente refletir o conteúdo da obra, intensificando-o, comentando-o ou fazendo uma alusão. O filósofo Jacques Derrida já disse que "um título é sempre uma promessa", e eu completaria observando que muitas vezes o leitor nem sabe direito o que lhe prometem, mas está disposto a pagar para ver.

Ao intitular um livro, o autor é um pouco como um publicitário. Ele sabe que precisa dar ao editor, ao livreiro e ao leitor uma ideia clara do que é a obra para evitar mal-entendidos. Por outro lado, ele obedece também a um impulso que lhe diz para ser diferente, inesperado, a fim de que seu título não seja demasiado feijão-com-arroz e passe a imagem de autor pouco criativo.

Objetividade

Livros objetivos precisam ter títulos objetivos. Se, por exemplo, vemos numa lista livros intitulados Manual Prático de Carpintaria, História da Revolução Francesa, Dicionário de Artes Gráficas, entre outros, confiamos na provável fidelidade do conteúdo ao título do livro. A situação se complica um pouco quando obras puramente literárias imitam esses títulos, como fizeram o escritor Jorge Luís Borges na sua História Universal da Infâmia, Richard Brautigan em A Pesca da Truta na América, que são obras de ficção, ou então o brasileiro Manoel de Barros com seus livros de poesia intitulados Compêndio para Uso dos Pássaros ou Gramática Expositiva do Chão.

Autoexplicativos

Antigamente, os títulos eram muito mais longos e explícitos do que hoje. O primeiro livro impresso no Brasil intitulava-se (na grafia da época) Relação da Entrada que fez o Excelentíssimo, e Reverendíssimo Senhor D. Fr. Antonio do Desterro Malheyro, Bispo do Rio de Janeiro, em o primeiro dia deste presente Anno de 1747, havendo sido seis Annos Bispo do Reyno de Angola, donde por nomiação de sua Magestade, e Bulla Pontificia, foy promovido para esta Diocesi. É um desses títulos que quase tornam supérflua a leitura da obra.

Intertextualidade

Fazer do título uma citação ou alusão é uma solução clássica. Campos de Carvalho intitulou seu romance Vaca de Nariz Sutil a partir de uma tela homônima de Jean Dubuffet. Por Quem os Sinos Dobram, de Hemingway, é citação de um poema de John Donne. Os Frutos Dourados do Sol, de Ray Bradbury, vem de um poema de W. B. Yeats. Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos, de Rubem Fonseca, é uma frase de Sigmund Freud. Títulos assim indicam afinidade entre duas obras ou estados de espírito, uma pista plantada ali pelo autor.

Padrões de experiência

A literatura de gênero promete a repetição de uma experiência estética com um mínimo de variação e baseada na familiaridade. Os livros de Edward S. Aarons sobre Sam Durell, um agente da CIA, têm todos este formato de título: Missão Budapeste, Missão Stella Marni etc. As obras de Erle Stanley Gardner também obedecem a um mesmo padrão de títulos (O Caso da Lata Vazia e O Caso da Morena Emprestada, por exemplo) garantindo ao leitor "um pouco mais daquilo mesmo", que é justamente o que ele procura.

Ponto de partida

Muitos autores começam um livro pelo título. José Saramago ia passando na rua e julgou ter visto uma manchete de jornal dizendo O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Voltou, conferiu: não era. As palavras eram parecidas, mas eram outras, porém isso não impediu que o título ficasse martelando na sua memória e se tornasse o grão inicial de um livro notável.

Na última hora

A trilogia O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo, iria se chamar O Vento e o Tempo, e só na hora de ir para a gráfica o autor fez a mudança final. O mesmo ocorreu com Vidas Secas, de Graciliano Ramos, que em estágios sucessivos de sua preparação esteve para se chamar O Mundo Cheio de Penas. Na última hora, a sabedoria instintiva do autor falou mais alto.

Títulos “casuais”

A literatura tem valorizado títulos em frases longas, que parecem estar ali por acaso: Eu Receberia as Piores Notícias dos seus Lindos Lábios, de Marçal Aquino, Agora Fiquem Esperando pelo Ano Passado, de Philip K. Dick, A Partir de Amanhã eu Juro que a Vida vai ser Agora, de Gregório Duvivier, E do Meio do Mundo Prostituto só Amores Guardei ao meu Charuto, de Rubem Fonseca.

Sutilezas

Alguns títulos chamam a atenção porque destoam dos usos do gênero a que pertencem. Estamos acostumados a ver coletâneas de poemas intituladas Espumas Flutuantes, Estrela da Manhã, A Rosa do Povo etc. Quando Aníbal Augusto Gama intitulou sua coletânea de poemas Cinqüenta anos falando sozinho, deu-lhe um cunho inesperadamente pessoal, reflexivo.

Esquisitices

Um título muito esquisito pode ser um sinal de que o conteúdo é mais esquisito ainda. Se o leitor frequenta sebos, procure as seguintes raridades, e veja se não tenho razão: Os Morcegos Estão Comendo os Mamãos Maduros, de Gramiro de Matos, Uma Vitória Dentro de uma Derrota que Não Tive: esta Derrota foi a Vitória do meu Livro, de José Américo II.

Valor agregado

Muitas vezes uma única palavra, nova e desconhecida, basta para produzir um título cheio de alusões e mistério. Neuromancer, de William Gibson; Avalovara, de Osman Lins; Sagarana, de Guimarães Rosa. Títulos assim têm a vantagem de fazer com que essa palavra emblemática fique para sempre associada ao autor que a inventou ou lhe deu visibilidade.


Braulio Tavares é autor de Contando Histórias em Versos (Editora 34, 2005)

(Texto extraído da Revista Língua Portuguesa nº 40, fevereiro de 2009
www.revistalingua.com.br)

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