Reciclagem


Emanuel Mazza

O dia ainda não amanhecera. Era madrugada escura e uma névoa seca, bem fria, cobria o ar, sugerindo vagamente a lua e algumas estrelas. O homem despertou de um torpor, demorando em reconhecer onde estava, mas então se recorda: era um pequeno quarto feito de partes de papelão entrelaçadas por fitas adesivas. Ele limpou os olhos com os dedos da mão e mirou o subir e descer do colo da mulher a seu lado, enquanto ouvia o respirar calmo dos filhos no chão, protegidos por folhas de jornal. O frio invadia o quarto com seu peso de chumbo, e penetrava fundo nos ossos. Sentiu o crepitar de uma fogueira acesa lá fora, disposta no centro de um círculo de outros quadrados de papel, que o chamava como o apelo de um farol aos navegantes. Sua vontade, entretanto, era de caminhar lentamente em direção ao fogo, e se fundir com ele, na tentativa de acabar com o frio medonho, largar a própria carne ao sabor das chamas e com essa aflição final dar cabo de sua dor infinita.

Chegou o mais próximo que pôde da fogueira e cumprimentou os amigos num aceno, os dentes expostos em desalinho, tentando ocultar o desespero. Ainda não despertara por completo. Sentia a náusea da noite anterior e a cabeça ribombava sob o efeito da embriaguez contínua a que se submetia lentamente para suportar seu destino, presa de um alcoolismo calado e servil, guardado entre as paredes do quarto de papel, num ardor murmurativo que lhe dissolvia as entranhas.

Não atinava com o novo dia.

“Você não vai trabalhar hoje?” lhe fala uma voz um pouco mais distante da fogueira. A pergunta lhe caiu como um raio, teria que ir logo, antes do lusco-fusco, senão não encontraria mais nada. O homem levantou-se, saiu cambaleante e buscou um pouco de água na bacia para lavar o rosto, depois um café de cor amarela disposto em um grande bule armado sobre um tripé de pedras, curtidas por galhos e gravetos que estalavam em outro arranjo, e buscou pela carroça. O filho já o esperava, instalado comodamente diante do estrado de madeira. Pegou pelos cabos com a mão e, fazendo as vezes do animal, foi à cata do lixo.

O primeiro sol da manhã os encontrou com a carroça cheia, apinhada de latas e papel, cuidadosamente arrumados para que não ocupasse muito espaço, o homem dobrado ao peso do próprio corpo, o peito brilhante de suor, o olhar fixo no chão enquanto puxava o conjunto, que era a maneira que havia de render mais força; o menino de camisa aberta ao vento, num sorriso lesto, olhos fixos em outros monturos. Os dois, homem e menino, calados na espera irremediável das horas, a cidade recrudescendo nas próprias cinzas, restos de outros homens que inopinadamente esperam, e esperam por dias melhores.

Depois, o de sempre, o converter de lixo em centavos, o transmutar de centavos em comida, o eterno arrastar de dejetos, produtos de uma cidade que tem vida própria, respira e come e bebe, e não tem mais onde expurgar sua angústia.

(O homem passa sobre uma ponte; abaixo, a fileira desmedida de veículos que estertoram outros sonhos. Se saltasse dali não haveria como não morrer, ou pela queda, ou pelo atropelo das máquinas apressadas).

Só lhe restava esperar, ao fim do dia, pelo calor íntimo da garrafa de bebida, e deleitar-se com o aconchego frio do seu castelo de papel, até o descortinar certeiro de outra madrugada para, assim, sem que soubessem, renovar em eterno sua servidão.

Um clarão de luz lhe avisa que não precisa mais sentir dor. Tudo tão rápido que nem lhe dá tempo de compreender, apenas o menino percebe o carro desgovernado chocar-se contra a carroça, apenas o menino assiste o pai morto, ossos e sangue dispersos no chão ante uma cidade silente, aquietada no som grotesco da indiferença.

O enterro teve que seguir rápido, não havia tempo para rituais, somente o baque seco da terra sobre a carne, uma carne despida de si mesma, envolta no pano fino com que costumava dormir. Ao menos agora não sentiria mais frio.

Dia seguinte o menino segurava a carroça, o irmão mais novo sobre o estrado, o trabalho por fazer, a fome que não dava trégua.

Afinal, aquele era um país vencedor, campeão de reciclagem de lixo!

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