A Muriçoca





Emanuel Mazza

Imersa em sua glória ela pousava cantando, cantava não, fruía as asas num som agudo, estridente, em seu passeio de caçadora. O corpo bojudo, saciado de sangue, denunciava-lhe a placidez, a tranqüilidade. Estava no repasto e a noite fazia-se alta, acobertada no silêncio da madrugada. A caça sobre a cama, irrequieta, tentando dormir. Envolvia-se toda no lençol, abraçava o travesseiro em torno das orelhas. Em vão! Não conseguiria o sossego tão necessário para o dia de trabalho a seguir. Por muitas vezes havia levantado e perseguido o inseto repelente que teimava em incomodá-lo. Ele era astuto, porém, rapidamente escapava, camuflado na sua pequenez, inalcançável nas alturas do teto. O quarto sombrio de repouso do hospital denunciava tudo que não poderia ser: uma noite de trabalho perturbada não por pacientes a procura de socorro, mas por um, e apenas um, inseto infame que escapara do banheiro. Maldita a hora em que se lhe abriram as portas da prisão.

Eram dois habitantes que partilhavam a mesma alcova. A noite quente não ajudava a nenhum, aumentando o apetite da feroz devoradora e o desespero da vítima. Sonhava com outros mundos, em escapar dali correndo, em nunca mais precisar voltar. Preocupava-se com o dia fastidioso do porvir, em que teria de enfrentar a sina constante, os olhos semicerrados de sono, as pálpebras inchadas.

Súbito, acendeu a luz mais uma vez, numa tentativa desesperada de capturar o animal. Ali estava ele, ou ela, que são as que têm sede de sangue, repousando na parede, despreocupada. Lentamente ele recorreu a um livro sobre a cadeira ao lado da cama. Seguiu em direção à minúscula fera e tentou acertá-la num golpe. O livro zuniu cortando o ar e bateu direto contra a parede onde estava pousado o inseto. Estava, pois não está mais lá. Fora mais rápido que seu algoz. Ele se desesperou, quase chorando: sabia que não conseguiria ter paz por aquela noite. Uma paz tão preciosa e desejada. O inseto desaparecera por encanto. Não podia ser real, era coisa do diabo. Sim, o diabo estava contra ele e nunca lhe daria sossego!

Tornou a buscar a pequena caçadora, e eis que a viu. Ela estava lá, sobre o colchão, ao lado do travesseiro, um pouco atordoada. Num misto de alegria e desprezo ele ergueu a mão com o livro e desferiu o golpe fatal. Esse é certeiro e espalha todo o sangue do ventre da paladina na pequena porção do lençol. Vitória completa. Com um sorriso nos lábios, esfregou a contracapa do livro, livrando-se para sempre da mancha asquerosa, e apagou a luz para dormir. A caçadora no mesmo dia virou caça. Fez questão de deitar-se ao lado da presa esmagada, junto ao sangue que antes era seu. Agora, talvez, dormirão em paz, lado a lado como dois amantes. Isso se os pacientes não o importunarem noite adentro.

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