Fiapo d’água
Antônio Cardoso Neto
Não muito longe do mar, o fiapo d’água desembrenha-se da rocha nua no pé da serra para mais adiante emendar-se com outras águas, mudando inúmeras vezes de nome e de dono como um cão vadio. Logo mais, passa a chamar-se Tietê.
Ao contrário das corredeiras que se desgarram das encostas escarpadas da serra e se lançam no vazio buscando o mar desesperadas, o rio recém-nascido inicia sua sina cabocla de costas para o Atlântico, levando na corrente mansa quem ou o quê se destine ao interior. Antes, passa pela urbe desmesurada, onde recebe mais detrito que qualquer outro rio do universo. Torna-se uma gosma que a perpassa lentamente e empesta o ar, devolvendo-lhe os insultos. Só muito depois é que reaparecem alguns lambaris e lambe-pedras. Não recupera mais a transparência.
Depois de cruzar cafezais e pastagens, se enfia pela vastidão pálida e vulgar dos canaviais. Acolhe o Piracicaba, intumesce o ventre em Itapuí, encontra o Paraná e se embaralha a outros nomes tupis vindos como flechas de ambas as margens: Sucuriú, Aguapeí, Taquaruçu, Paranapanema, Amambaí, Ivaí, Piquiri.
As águas se alargam, diminuem o passo e escorrem vagarosas sobre o sudário lacustre que cobre as sete quedas de Guaíra. Escorregam pelo cimento, desabam espremidas entre as paredes de aço, se arrebentam nas turbinas e, em meio à espuma, unem-se às do Iguaçu, que despencam de um precipício perto dali.
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Margeada por palmeiras e araucárias estrangeiras, a correnteza segue seu curso até juntar-se ao Paraguai que traz no rastro a lama das torrentes pantaneiras e as areias quíchuas do Pilcumayo. O caudal prossegue indiferente às canhoneiras de Mitre e às fragatas de Tamandaré, envoltas pelo lodo escuro das profundezas. É aí, entre a esquadra inteira de Solano López ancorada no negrume do fundo do rio, que habita escondido o coração guarani.
A corrente circunda a Mesopotâmia Austral e fende-se em veredas líquidas que se derramam na boca do rio dos pássaros pintados. O que são a tesoura das Parcas e o alfanje do arcanjo negro para todo sangue é o tridente de Netuno para essas águas todas. O deflúvio agoniza no leito de prata.
Ao lado da cidade colossal que se lhe apresenta como aquela da infância de suas águas, chega o Tietê ao destino que pensava ter evitado quando era um fiapo d’água no pé da serra.
e não fosse sua teimosia em contrariar o senso lusitano e fugir do mar, talvez bandeirantes e emboabas não tivessem se animado a subir corredeira à cata de bugre e pedra na fundura das matas. Aí, mais dia, menos dia, genocidas iguais a eles teriam surgido do poente, falando castelhano. E então, quem sabe, ao Brasil não restasse mais que ser uma tripa litorânea do Pará à bela Meiembipe. Um enorme Chile oriental.
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