Manual do recém-chegado a Brasília




Antônio Cardoso Neto


Você acaba de chegar a Brasília e está mais perdido que cego em tiroteio com esse negócio de SQS, SQN, W3, L2 e outras siglas. Vá se acostumando, pois aqui é assim mesmo: é FHC, JK, ACM... depois acaba virando pizza, mas antes vira sigla. Mas, essas letras e algarismos (ou dígitos, se você tiver menos de quarenta anos) definem os logradouros urbanos de maneira original e bastante racional. Como tudo na vida, com o passar do tempo, você acabará se acostumando.

Exemplo de imparcialidade regional, a capital do Brasil eqüidista de todos os grandes centros do país, ou seja, é igualmente longe de tudo. O Distrito Federal, ou DF, é uma ilha cercada de Goiás por todo lado, e o nome Brasília refere-se apenas à Região Administrativa de Brasília, que corresponde a pouco mais que o Plano Piloto, ou as “asas do avião”, se preferir. O gentílico de Brasília é brasiliense. Quanto a quem nasce no DF, são chamados de candangos, mas desconfio que a denominação oficial seja distrito-federense, ou algo parecido.

O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do DF fica entre o da Polônia e o da Argentina. Até pouco tempo atrás, os índices locais de alcoolismo, divórcio e suicídio eram os maiores do país, o que dava a Brasília um certo charme de Estocolmo Tropical.

É curioso o fato de que em um território tão pequeno como o do DF, estejam riachos e córregos pertencentes às bacias hidrográficas do Tocantins, do São Francisco e do Paraná. E deve ser por isso que quando isso aqui vira, periodicamente, um mar de lama, ela escorre e nunca se sabe onde é que vai parar. Dependendo do rumo que pegar, pode ir parar em Belém, em Petrolina ou até mesmo em Buenos Aires.

Não há eleições bienais, pois não há prefeito nem vereadores. O poder legislativo local é uma mescla de Câmara Municipal com Assembléia Legislativa, chamada Câmara Legislativa, cujos mandatários são os Deputados Distritais.

Tive aqui a oportunidade de entender, de uma vez por todas, aquela coisa de existirem peronistas de esquerda e peronistas de direita na Argentina. O negócio é que todo mundo em Brasília, seja de esquerda, de direita, torcedor do Corinthians, muçulmano ou umbandista, adora, venera, idolatra o JK.


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Talvez Lúcio Costa e Oscar Niemeyer imaginassem um futuro com transporte coletivo eficiente, mas a verdade é que o Plano Piloto acabou virando uma espécie de autorama, com ruas sem calçadas e estradas sem acostamento. É bem verdade que os pedestres têm total preferência ao atravessarem as vias, desde que não haja semáforo, mas, quando chove, eles metem o pé na lama, já que quase não há calçadas. É nessas horas que o pobre pedestre se sente parte do mar de lama que citei agora há pouco. Ninguém me tira da cabeça que a cidade foi construída em homenagem à então nascente indústria automobilística; não é à toa que a bandeira do DF parece sinal de trânsito e que SQN413 lembra mais placa de automóvel que endereço.

Embora carioca não saia do Rio nem com chuva de bala perdida, Brasília é o único lugar do mundo em que há cariocas fora do Rio de Janeiro. Se você for carioca, há o Lago Paranoá. Se for paulistano, pode ir passear no aeroporto aos domingos, mas os brasilienses preferem passear na Ponte JK, projeto arrojado escolhido pela Associação dos Engenheiros da Pensilvânia como a mais bela obra de engenharia de 2002. Para quem sente saudade da praia, no Parque da Cidade existe uma piscina com ondas, que não consegue matar a saudade do mar, mas pelo menos faz rir um pouco.

Não conheço local no Brasil que possua tantas estações de rádio de qualidade como Brasília. Há estações que dão ênfase a MPB, a jazz, a música instrumental genérica, a música erudita. É evidente que também há muita porcaria, mas são muitas as estações boas. Uma delas toca música instrumental indistintamente o tempo todo. Mesmo que seja por mera curiosidade, onde é que você consegue ouvir Xavier Cugat, Poly e seu Conjunto, Perez Prado, Ray Conniff, Ima Sumac e outras tranqueiras, hoje em dia? É uma sensação igual a andar de bonde ou ouvir a gaitinha do amolador de faca. Dá gosto ouvir rádio em Brasília.


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Dizem que Lúcio Costa não gostava de ouvir dizerem que o Plano Piloto tem o formato de um avião. Parece que a idéia original é um arco estirado com uma flecha apontada para o leste, em cujas praias aportariam as hostes invasoras. Tenho quase certeza de que a associação com avião tenha partido de alguma outra associação que algum candango fez com a palavra piloto. Avião ou não, o Plano, como é mais conhecido, possui duas asas: a Asa Norte e a Asa Sul.

A “fuselagem” do avião se estende de leste para oeste, encontrando-se com as asas na estação rodoviária (ou Rodoviária do Plano) de onde chegam e partem os ônibus que ligam o Plano às chamadas cidades satélites. No extremo ocidental da fuselagem, situa-se a Rodoferroviária. A fuselagem possui duas pistas, separadas por um canteiro enorme. A que sai da Rodoferroviária e vai para o leste chama-se S1, que significa “pista sul numero 1”. Simetricamente, a do outro lado é a N1. A tal fuselagem chama-se Eixo Monumental.

No canteiro que separa as duas vias, situam-se o Memorial JK, o Centro de Convenções Ulysses Guimarães, o Clube do Choro, o Planetário e a Torre de TV. Na margem norte da N1 ficam o Palácio do Buriti, o Estádio Mané Garrincha, o Autódromo e o Ginásio Nilson Nélson.

Como já foi dito, o Eixo Monumental passa pela Rodoviária do Plano onde atravessa as asas. A partir daí, começa o lado Leste do Eixo Monumental. Ao lado da N1, está o Teatro Nacional, inspirado em uma pirâmide asteca, que dizem que o General Costa e Silva achava que era grega. No lado sul fica a bela Catedral de Brasília, em frente da qual há um campanário cuja forma exigiu tamanha ferragem para sustentá-lo que não pode mais ser considerado como sendo de concreto armado. Um amigo engenheiro chama o processo construtivo do campanário de “ferro à milanesa”. Começa, então, um monte de caixotes, como uma fileira de dominós em ambos os lados do Eixo. São os Ministérios. Os últimos dois ministérios não são em formato de caixotes, porque sabem se virar sozinhos, e é bem sabido que isso é coisa que caixote nenhum consegue fazer. São os da Justiça, ao lado da N1, e o das Relações Exteriores (ou Itamaraty), ao lado da S1: duas obras de gosto refinado.

Aí você já está na famigerada Praça dos Três Poderes, formada pelo Congresso Nacional, pelo Supremo Tribunal de Justiça e pelo Palácio do Planalto. O penicão do Congresso Nacional é o plenário da Câmara dos Deputados, e a tartarugona é o do Senado Nacional. Em frente ao Palácio do Planalto há um descampado onde está a escultura Dois Candangos, que junto com o Meteoro, que fica no Itamaraty, e a Lavadeiras, que fica na frente do Palácio da Alvorada, são, de longe, as mais belas esculturas de Brasília, bem diferentes de uma estátua-coisa, conhecida como “que porra é essa”, que fica em frente à cidade satélite de Sobradinho, e uma outra na Saída Sul do DF, chamada de “chifrudo do posto de gasolina”. Passando pelo Palácio do Planalto e seguindo em frente, estão o Palácio do Jaburu, que já foi residência oficial de muitos jaburus, e o magnífico Palácio da Alvorada. Atrás dos Ministérios, passam as vias S2 e N2.

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O fundador da cidade resolveu colocar a embaixada da então URSS bem em frente da dos EUA, com a sede da CNBB no meio das duas, ao lado da embaixada da pátria-mãe, Portugal. A francesa fica perto da britânica; a israelense, mais ou menos perto da libanesa, e por aí vai. Os gregos fincaram a bandeira da CEE ao lado da bandeira grega, talvez pra fazer fusquinha aos funcionários da vizinha embaixada da Turquia. A arquitetura das embaixadas, como a mexicana, é de encher os olhos. As da Suécia, da Noruega, da Finlândia e da Dinamarca são bastante frugais. Já a da Costa do Marfim é uma pompa que só vendo.

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Rasgando as asas, no sentido longitudinal da envergadura, de ponta a ponta, está o Eixão, uma via com três pistas de cada lado. O Eixão atravessa o Eixo Monumental pelo Buraco de Tatu, que passa por baixo da Rodoviária. Aos domingos e feriados, o Eixão fica fechado ao tráfego de veículos, vira um calçadão de dezessete quilômetros (acho que é o maior calçadão do mundo), e as pessoas aproveitam para andar em uma calçada, coisa quase impossível nos dias úteis. Há um canteiro em cada lado do Eixão, e depois de cada um deles há mais duas vias: o Eixinho L a leste, e o Eixinho W a oeste. Já me conformei com o fato de que jamais virei a saber em que língua os termos “leste” e ”oeste” começam, respectiva e simultaneamente, com as letras L e W.

Cada uma das Super Quadras (chamadas simplesmente de Quadras) conta com boa infra-estrutura e uma auto-suficiência razoável. São bastante arborizadas e há quase sempre um campinho de futebol, um parquinho infantil e uma banca de revistas. As da Asa Sul denominam-se SQS (Super Quadra Sul). A denominação das quadras da asa norte fica como tarefa de casa.

As quadras são enumeradas com três algarismos. As centenas pares ficam no lado leste das asas, e crescem à medida que se afastam do Eixinho L. As centenas ímpares ficam no lado oeste das asas, e crescem à medida que se afastam do Eixinho W. As unidades aumentam à medida que as quadras se afastam do Eixo Monumental, começando em um e terminando em dezesseis.

Ao lado do Eixinho L, ficam as quadras cujo primeiro algarismo é dois. Entre essas quadras e as que se iniciam pelo algarismo quatro (ou “quadras quatrocentos”), passa a via L1. Entre as quadras quatrocentos e as quadras 600, passa a L2; entre as 600 e as 800, passa a L3; entre as 800 e as 1000, passa a L4, e acabou, pois as quadras mil ficam nas margens do Lago Paranoá.

No lado oeste, é a mesma coisa: a via W1 separa as quadras cem das quadras trezentos. Continuando nossa emocionante viagem rumo ao oeste, atravessamos a W2, que separa as quadras 300 das 500, e a W3, que possui duas pistas com um canteiro no meio, e separa as 500 das 700. Dependendo do teor alcoólico, a W3 lembra às vezes a rua de uma cidade normal. Entre as 700 e as 900 passa a W4, e depois das 900, passa a W5, que a separa das 1100. Daí em diante, se você estiver na Asa Sul, vem o Parque da Cidade; se estiver na Asa Norte, vem o Parque da Água Mineral. E é assim que a coisa funciona. Tanto o fluxo da W1 como o da L1 são interrompidos nas quadras cujo número é um múltiplo de 4, para dar lugar a escolas, academias de ginástica e congêneres.

Não acredito que haja outra cidade tão orientada pelos pontos cardeais como Brasília. Seria, portanto, de esperar que a população os conhecesse bem. No entanto, todo mapa de Brasília é mostrado deitado de lado, com a rosa-dos-ventos apontando o oeste para cima, para que os lados direitos e esquerdo fiquem simétricos.

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A disposição das quadras é como a amarração de tijolos. A cada duas quadras, no sentido longitudinal das asas, há um Setor Comercial Local. São os SCLS, na Asa Sul, e os SCLN, na Asa Norte, também chamados de Entre-Quadras. Os que estão entre o Eixinho L e a L1 (ou o Eixinho W e a W1) ficam entre as quadras cujo número menor é ímpar. Os que ficam entre a L1 e a L2 (ou a W1 e a W2) ficam entre as quadras cujo número menor é par.

Uma coisa curiosa é a Rua das Farmácias, que fica ao lado do Hospital Sara Kubitchek. É um concorrente ao lado do outro, como em uma feira livre. Aqui é tudo setorizado. Os Setores de Diversões (tanto o norte como o sul) situam-se ao lado da Rodoviária. As zonas sul das cidades brasileiras são, geralmente, mais ricas que as zonas norte. Nos Setores de Diversão de Brasília é o contrário: o Conjunto Nacional (no norte) é relativamente elegante quando comparado com o decadente Conic (no sul). O Conjunto Nacional lembra um pouco seu homônimo da esquina da Avenida Paulista com a Rua Augusta. Parece-me evidente que um foi inspirado no outro, ou foi o outro que foi inspirado no um. O Conic já foi bem interessante, mas já faz bem uns vinte anos, que anda cada vez mais decadente.

Os Setores Comerciais (SCS e SCN), os Setores Hoteleiros (SHS e SHN), os Setores de Autarquias e os Setores Bancários ficam no que seriam as quadras 01. Nas redondezas ficam o que deveriam ser chamados de SPN e SPS, respectivamente Setores de Prostitutas Norte e Sul.

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Os edifícios residenciais das quadras são os chamados blocos, designados por letras latinas: A, B, C etc. Cada bloco tem seis andares, com exceção dos situados nas quadras 400, que possuem somente três. São sustentados por “pilotis”, grande jogada arquitetônica que permite que você circule livremente sob eles. Os blocos J e K das quadras 100 e 200, ficam defronte aos Eixinhos, talvez em homenagem ao fundador da cidade.

Qualquer bloco de qualquer quadra nunca dista mais de 200 metros de uma farmácia, padaria ou banca de revistas.

Muita gente vai te desaconselhar a morar aqui, com um argumento pra lá de idiota: “Brasília não tem esquina”, dirão. Mas quem precisa de eSQuiNa, quando se tem SQN? Você vai gostar daqui.


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Comentários

  1. Antônio, você é uma delícia de ser lido. E até mesmo quando faz brincadeira sobre esta cidade que me acolheu há 39 anos, comove as pessoas que sabem que Brasília é isso mesmo: estranha, ilógica,mas querida! Você não deixou passar nada, o que me permite arriscar que você é uma apaixonado por nossa capital. Gostei, gostei muito.E vou guardar para os meus futuros netos, para mostrar como é de verdade a terra natal da mãe delas, minha filha, que nasceu aqui. Abraços.

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