T-Bom
Luci Afonso
O palco é um estrado coberto por um carpete cinza, que também compõe o cenário. No último minuto, alguém se lembra de pendurar o banner do patrocinador, uma megaempresa do petróleo. Mais ao fundo, um balcão de carnes, farofas e temperos. Ao lado, freezers com cervejinhas a 2 reais e, bem atrás, fogões rústicos onde se cozinham os caldos de frango e de carne seca com abóbora, vendidos a preços populares, sem pimenta.
Um grande toldo foi aberto até a lateral da rua, e debaixo dele as mesas e cadeiras de bar disputam espaço com carros, motos, bicicletas e cachorros. A loja à direita fechou no horário comercial; a da esquerda é uma farmácia movimentadíssima, como se a esta hora todos tivessem ficado doentes.
Chego às 20h, como pedia o convite. Bastou-me atravessar a rua, pois moro na quadra ao lado. Se todo deslocamento fosse assim tão fácil! Nada de dirigir, acelerar, frear, trocar marchas! Nada de estacionar! Nada de manobras!
Como dizia, chego cedo e encontro os primeiros convidados armados de crônicas e poemas. O público já é grande e muita gente ficou de pé. Os dois escritores são logo chamados e assumem o modesto tablado. À primeira palavra que recitam em prosa ou verso, porém, agiganta-se o palco, transforma-se o cenário. A confusão em volta passa a transcorrer em câmera lenta: todos, homens, meio homens, bichos e meio bichos se aquietam, respeitosos à arte que se encena naquele instante.
Seguem-se músicos, poetas, músicos, poetas. O tempo é pouco para esses talentos nascidos em frestas de paredes úmidas, como aquelas florzinhas amarelas que quase ninguém vê. Entre os artistas circulam catadores de latinha, crianças pedintes, bêbados e cachorros sujos. Cultura e miséria convivem em harmonia esta noite e ambas transcendem pequenos espaços.
Terminado o encontro, faço uma trouxinha de tudo o que vi e ouvi e retorno saciada para casa. Sempre que faltar esperança, basta dar alguns passos, atravessar a rua e me curar com poesia.
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