"Não matarás" — que mandamento é esse?
Olívia Maia
Era domingo. Estávamos, eu e um casal de amigos, em Pirenópolis. Ainda sentia o delicioso sabor da pamonha. Gargalhávamos muito sobre os planos que eu acabara de traçar para um futuro muito próximo. O de alugar uma casa naquela cidade.
Durante o passeio pelas ruas simples e acolhedoras... Ia mostrando como ela deveria ser... Numa rua arborizada... Próxima a uma praça... Com portas e janelas azuis... Que tivesse “batentes” para que no final de tardes, eu pudesse sentar para prosear com as vizinhas. Tomando cafezinho... Comendo biscoitos. Onde pudesse, ainda, ler e ouvir música com as portas abertas, e sempre responder a um bom dia, boa tarde ou boa noite de um passante... Doce vida sossegada... Exclamava eu a cada casa que imaginava como o meu futuro lar.
Sentamos no saguão do hotel enquanto aguardávamos taças para saborear um bom vinho que havíamos comprado para celebrar a minha mais nova decisão.
A televisão estava ligada na TV Globo onde passava o Fantástico. De repente o apresentador com uma voz grave, e uma expressão para a qual estão bastante treinados, anunciou a morte de uma criança de 5 anos, em São Paulo, ocorrida no dia anterior — sábado, dia 29 de março. Não prestamos muita atenção; afinal, seria mais uma morte dentre tantas. E as versões começaram... Eram tantas... Tão confusas... Tão dramatizadas, tão traumatizantes que resolvemos desligar a televisão e continuar conversando.
Achei que acabara ali... “tá lá um corpo estendido no chão...” Mas no dia seguinte, qual não foi minha surpresa em verificar que todos os canais de TV que eu ligava estavam tratando do fato. E eu... Olhei também o corpo estendido... Olhei o pranto da mãe... Olhei a dor...olhei... Não sei mais o que olhei... Eu também interroguei. “Todos” estavam perguntando — quem fez isso?
E os dias foram passando. As notícias se avolumando... Agora havia suspeitos. O pai e a madrasta foram presos temporariamente. E lá estávamos participando em coro de mais um capítulo do grande show da vida: assassinos... Foram eles... Monstros... Foi ... Não foi.
Percebi, após uma semana, que mesmo tentando me isentar e não querendo ser contaminada pela comoção que se instalara, meu coração estava inquieto. Procurei ouvi-lo... A saudade da minha casinha em Pirenópolis se fez presente. O desejo de uma vida calma e simples longe de violências tomou todo o meu Ser. Aquietei-me. Queria ouvi-lo direito. Quando me agito não compreendo muito bem o que meu coração põe-se a dizer. Pensei por alguns segundos no que leva uma pessoa “normal” a cometer determinados atos. Fiquei com essa sensação. Com esse medo da loucura.
Sentindo que ia para de ouvir a voz do meu coração, fui até o micro. Escrever é uma das formas que encontrei de dar passagem às minhas emoções, sentimentos, percepções. Resolvi escrever não sobre o assunto já tão escrito... Reescrito...dito... Desdito... Maldito. Mas sobre “todos” que se envolveram. E eu nesse “todo” pensando sempre... O que leva...por que leva...onde leva... Não leva... Alguém a praticar determinados atos.
De repente... Bum... Um barulho surdo veio da minha varanda. Levantei apressada. Olhei para um lado, para o outro e nada. Quando percebi um pássaro no cantinho, abrindo e fechando o bico.
“Oh! Seu destrambelhado, não viu um vidro aí bem a sua frente?" Perguntei em voz alta e firme.
O pássaro apenas me olhou com o seu biquinho abrindo e fechando. Só então fui me acalmando, e percebendo que eu estava com muito medo de pegar aquele passarinho. Que ele não suportasse a trombada e morresse. Sempre tive horror da morte. E a dita cuja estava lá bem na espreita.
“Vou cuidar de você, mas da próxima vez ver se presta mais atenção”. Resmunguei. E antes de pegar uma bacia com água fria para tentar examinar os machucados, fui tomada de um susto.
“Destrambelhado! Atenção! com quem você pensa que está falando? Com um pássaro paspalho que aprendeu a voar ontem?” Retrucou. Seus olhos se tornaram brilhantes e seu bico parou de abrir e fechar.
Meio envergonhada com minha atitude, peguei aquele pequeno serzinho em minhas mãos, e antes que pudesse me desculpar pela tremenda falta de jeito, ouvi:
“Destrambelhados, malucos, adoidados são vocês humanos que saem colocando tudo no lugar errado, janelas, telas, vidro inclusive, para impedirem nosso vôo”. Abriu e fechou o biquinho. Virou o pescoço para o lado. Parou de mexer-se.
Fiquei ali petrificada com aquele pássaro inerte em minha mão. Se já não sabia cuidar de um pássaro agonizante, agora é que a situação se complicara. Como seria fazer um enterro de um passarinho? Onde jogaria aquela morte que eu tanto temera?
Coloquei o passarinho embaixo de uma árvore. A imagem de uma menina rouxinol ou uma beija-flor voando pra morte veio à minha mente.
Entrei, desliguei o micro. Não conseguia terminar o que começara a escrever. Fui para a cama e chorei. Meu medo inconsciente de me identificar com a loucura foi tomando forma... Vi-me caminhando nas ruas de paralelepípedos...comendo pamonhas... Conversando com as vizinhas... Deixando as portas e janelas abertas, sem telas, para que jamais nenhum passarinho pudesse trombar e morrer.
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