Cartas a um jovem poeta
Rainer Maria Rilke
(Entre 1903 e 1908, o poeta austríaco Rainer Maria Rilke dirigiu uma série de cartas ao jovem Franz Xaver Kappus, que lhe pedia conselhos literários. Transcreveremos alguns trechos dessas cartas.)
“Paris, 17 de fevereiro de 1903.
Prezadíssimo Senhor,
... (o senhor) pergunta se os seus versos são bons. Peço-lhe que deixe tudo isso. O senhor está olhando para fora, e é justamente o que menos deveria fazer neste momento. Ninguém o pode aconselhar ou ajudar — ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranqüila de sua noite: "Sou mesmo forçado a escrever?” Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por um forte e simples "sou", então construa a sua vida de acordo com esta necessidade.
Aproxime-se então da natureza. Depois procure, como se fosse o primeiro homem, dizer o que vê, vive, ama e perde, o que a sua própria existência cotidiana lhe oferece; relate suas mágoas e seus desejos, seus pensamentos passageiros, sua fé em qualquer beleza — relate tudo isto com íntima e humilde sinceridade. Utilize, para se exprimir, as coisas do seu ambiente, as imagens dos seus sonhos e os objetos de sua lembrança. Se a própria existência cotidiana lhe parecer pobre, não a acuse. Acuse a si mesmo, diga consigo que não é bastante poeta para extrair as suas riquezas.
Para o criador, com efeito, não há pobreza nem lugar mesquinho e indiferente. Mesmo que se encontrasse numa prisão, cujas paredes impedissem todos os ruídos do mundo de chegar aos seus ouvidos, não lhe ficaria sempre sua infância, esta esplêndida e régia riqueza, esse tesouro de recordações? Volte a atenção para ela. Procure soerguer as sensações submersas deste longínquo passado: sua personalidade há de reforçar-se, sua solidão há de alargar-se e transformar-se numa habitação entre o lusco e fusco diante do qual o ruído dos outros passa longe, sem nela penetrar. Se depois desta volta para dentro, deste ensimesmar-se, brotarem versos, não mais pensará em perguntar seja a quem for se são bons.
Uma obra de arte é boa quando nasceu por necessidade. Neste caráter de origem está o seu critério — o único existente.
Também, meu prezado Senhor, não lhe posso dar outro conselho fora deste: entrar em si e examinar as profundidades de onde jorra sua vida; na fonte desta é que encontrará resposta à questão de saber se deve criar. Aceite-a tal como se lhe apresentar à primeira vista sem procurar interpretá-la. Talvez venha significar que o Senhor é chamado a ser um artista. Nesse caso aceite o destino e carregue-o com seu peso e a sua grandeza, sem nunca se preocupar com recompensa que possa vir de fora. O criador, com efeito, deve ser um mundo para si mesmo e encontrar tudo em si e nessa natureza a que se aliou...
Com todo o devotamento e toda a simpatia,
Olivia diz:
ResponderExcluirLuci:
Tive o merecimento de ler esse pequeno (grande) livro a beira do Rio Preguiça (MA), e até hoje muito das coisas escritas estão acesas em meu coração, como essa referência ao processo criativo:"...tudo está em deixar amadurecer e então dar à luz. Deixar cada semente de um sentimento germinar por completo dentro de si, na escuridão do indizível e do inconsciente, em um ponto inalcancável para o prório entendimento, e esperar com profunda humildade e paciência a hora do nascimento de uma nova clareza: só isso se chama viver artisticamente, tanto na compreensão quanto na criação"...
beijos. Olivia