Balizas e crônicas



Luci Afonso


Chegamos cedo ao local e procuramos vaga para estacionar. Encontramos uma em que caberia um caminhão, mas sou péssima em manobras. Felizmente, estou acompanhada de uma exímia motorista em diversos continentes, que se oferece para me orientar.
Minha falha se deve ao fato de que, no meu tempo de auto-escola, não se ensinava a baliza lateral, e ao longo dos anos fui me acostumando a procurar vagas em que caberiam, pelo menos, dois carros, e nas quais eu pudesse entrar de frente. Caso contrário, eu voltava depois.

A amiga me ensina, pacientemente, a fazer e a desfazer o volante, ao mesmo tempo me instruindo quanto ao momento certo de movimentar ou parar o carro. Sou boa aluna, e o resultado é perfeito: correto alinhamento ao meio-fio e igual distância entre os veículos da frente e de trás.

Subimos tranqüilamente a rampa até o edifício-sede. Observo que, bem em frente à entrada, há vagas enormes e vazias. Indago ao segurança se são permitidas a visitantes.
— Só para deficientes e idosos - responde ele.
Como sou quase ambos, em breve poderei parar ali.

O evento está curiosamente marcado para as 17h15. Entregamos nossos livros à moça responsável pelas vendas e nos sentamos no auditório para ensaiar os textos. O homenageado da noite é Castro Alves, e a música negra tem forte presença na programação. Escolho uma de minhas crônicas “bem líricas” — como um dia as definiu o professor —, enquanto minha amiga opta por “Atabaques” e desce ao palco para pedir a um dos músicos que acompanhe a leitura com seu instrumento.

Alguém tem a idéia de colocar quitutes na mesa à entrada do auditório. Só depois de retirada a comida é que participantes e convidados, de barriga cheia, voltam aos seus lugares.

Às 19h30min, surge a nossa hostess, com celular, programa e microfone na mão. Enquanto é feito o pronunciamento inicial, ela troca de roupa nos bastidores e faz as últimas ligações.

— Primeiro, quero avisar que nosso programa é totalmente flexível - ela esclarece. Antes de convidar o primeiro grupo de funk, ela faz uma pequena digressão para distinguir o genuíno “fank” do “funk” (pronunciado com “u”). Ninguém entende nada, mas todos se empolgam com a música.
— Agora, é um prazer chamar o poeta..., que vai ler um poema de sua autoria.
O convidado é pego de surpresa, pois seria o último no programa:
— Eu sou é contista. Não escrevo poemas. - E lê seu texto, contrariado. (Palmas.)

— Desculpem a confusão - diz a apresentadora.
— Bem, agora, a poetisa..., cujo livro “Versos da Vida” está esgotado.
A poetisa emenda:
— Meu livro “Versos da Vida” não está esgotado, porque eu escrevi foi “Vida em Versos”. - E recita seus poemas interativos, em que a platéia completa a última palavra de cada estrofe. Como sempre, faz muito sucesso.

Eu seria a próxima a me apresentar, mas tenho de aguardar dois grupos musicais, duas revelações da Casa e um número surpresa de uma cantora que precisa ir embora para cuidar da mãe inválida.

Quando finalmente é minha vez, estou frustrada com a demora.
— Nossa colega vai falar um pouco sobre o livro “Velhota, eu?”, uma produção independente, na verdade, dependente (riso).

Essa observação absolutamente incompreensível me confunde ainda mais. Explico à platéia que meus textos são de humor, mas que lidos por mim não ficam engraçados — introdução totalmente desnecessária; que minha maior intérprete está presente (refiro-me à poetisa interativa, que esconde o rosto com medo de ser chamada a ler “Velhota, eu?” pela centésima vez); e que por isso vou ler uma crônica poética.

Ao final do texto, emociono-me. Era de se esperar, pois ultimamente tenho crises de choro ao ver uma simples fatia de tomate ou ao ouvir as primeiras notas de uma música sertaneja. Mudança na medicação, explicou-me a médica. O problema é que essas crises duram em torno de 24 horas e necessitam de repouso absoluto para serem superadas — alguns Lexotans também ajudam.

A apresentadora percebe minha emoção e tenta, indiretamente, me consolar:
— Às vezes, as coisas estão pretas... (protesto da platéia 80% negra)... quer dizer, difíceis, mas amanhã é um novo dia. Vamos ouvir, agora, nossa outra cronista.

Controlo-me o tempo suficiente para usufruir os atabaques escritos e reais, que ressoam com ritmo e eloqüência. Depois, resolvo ir embora e minha amiga, solidária, me acompanha. Deixamos o auditório ao som do hit “Sarará criolo”.

Última surpresa da noite: o veículo estacionado à nossa frente foi substituído por uma caminhonete que praticamente engoliu o meu carro.
— Nunca sairemos daqui - penso, desesperada.
Ela adivinha meu pensamento:
— Não se preocupe, isso é muito comum nas ruas estreitas de Lisboa. Apesar de não parecer, há suficiente margem de manobra.

Tenho cega confiança em bons motoristas, mesmo que sejam mulheres. Esqueço o choro, afivelo o cinto e concentro-me de corpo e alma nas instruções precisas que partem do banco ao lado. Faço, desfaço, paro, vou à frente, vou atrás, e em poucos minutos estamos fora da vaga, sem nenhum arranhão em qualquer dos carros envolvidos.

Minha apresentação pode ter sido um fiasco, mas as manobras automobilísticas foram obras-primas. Agradeço efusivamente à amiga e lhe ofereço carona para o próximo evento.

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