Intimidade




Eneida Coaracy


Parei de escrever de repente, segurei a velha caneta Bic toda mordida na ponta, e a examinei fixamente. Na realidade, estava dando um tempo para ver se as idéias ficariam mais claras e conseguiria desenvolver o conto que pretendia escrever naquela tarde ensolarada. Descansei a caneta ao lado, peguei um lápis e o analisei com a mesma atenção. Pus os dois na minha frente, em cima do bloco de papel, e fiquei tentando me decidir qual dos dois usaria para escrever naquele momento.

Segurei o lápis, senti a maciez áspera da madeira na mão, escrevinhei alguma coisa e ouvi a grafite arranhar o papel. Observei os dois principais elementos de que dispunha para a minha tarefa literária: a folha de celulose, que um dia fora madeira, que um dia fora árvore, que dera sombra, que dera abrigo, que talvez dera frutos, que fizera parte de um sistema ecológico, que agora se transformara em instrumento de trabalho, que novamente se transformará em um outro elo dessa cadeia transformadora que chamamos vida. Continuei escrevendo. Eram sons aparentemente ásperos, às vezes guturais, mas melodiosos, prolongados por um rastro de madeira seco. Sons que parecia virem do ventre do próprio papel, como se este quisesse participar também do meu processo de criação. Os dois formavam um duo irresistível, melodioso, sincronizado. Onde começava o canto de um ou terminava o do outro? Continuei escrevendo por um longo tempo. Meu texto ainda não tinha forma. Eram reflexões que o lápis dizia para mim à medida que arranhava a folha de celulose com as minhas dores. Ou seriam as dores da grafite que um dia fora mineral, que saíra do ventre da mãe terra para, em co-autoria, escrever as estórias que o âmago do ser lhe ditaria em íntima parceria? Decidi mudar meu instrumento de trabalho. Voltei à caneta Bic.

Segurei-a novamente, senti-a entre os dedos, mordisquei sua ponta levemente, abaixei a mão esquerda e recomecei a escrevinhar. Silêncio total. Só a página a se animar à minha frente com o suave contorno das palavras que a caneta imprimia calada. Fiquei intrigada. Não conseguia sentir a interação desta nova parceria caneta-papel. À medida que continuava escrevendo, observava o rastro colorido que a caneta deixava atrás de si. Era como um rastro de foguete, levemente borrado pela minha mão canhestra que se arrastava por cima das letras impressas no papel pela caneta que seguia à frente, comandando a mão canhota. O resultado era um texto quase sempre levemente borrado, cujos riscos mais grosseiros eu sempre tentava apagar. Trabalho inútil, pois não desconhecia que a caneta surgira para imprimir um sentido de permanência quando se escreve um texto. Sabia que escrita feita à caneta significa decisão, coragem, muita segurança. E cadê a minha segurança, se até agora só havia travado estes diálogos com os meus parceiros de produção? O meu texto ainda continuava sem forma!

Não havia percebido que escolhera uma caneta de tinta vermelha e segui rabiscando idéias na folha de papel, agora pintada de vermelho, transbordando de dor. Seria melhor registrar as minhas dores em vermelho ou em preto? É. A caneta tem certas vantagens. Você pode dar o colorido que quiser ao que escreve. Se forem dores de raiva, o vermelho cai muito bem, se forem dores de luto, o preto vai melhor, se forem dores transformadoras, uma caneta furta-cor é a escolha perfeita. E assim por diante. Senti falta de ouvir o som das palavras sendo impressas no papel, mas gostei da possibilidade de tonalizar o texto de acordo com o assunto.

Após um tempo, larguei estes parceiros e decidi ser infiel desta vez, melhor dizendo, ser inovadora, moderna, atualizada: liguei o computador e continuei a minha busca. Logo fui invadida por uma luz branca e forte, que fazia meus olhos se apertarem. Após alguns minutos, já acostumada a este enfrentamento luminoso, olhei para a tela branca, muda e luminosa, escancarada na minha frente e comecei a digitar idéias no nada branco e profundo da tela calada do monitor. Ouvia o som das teclas gemerem secamente sob a pressão dos meus dedos que as acordavam da mudez plastificada em que as letras haviam sido transformadas. Ao apertá-las, com uma força talvez maior que o necessário, fazia um grande reboliço no meu novo instrumento de trabalho. Tentava me concentrar, mas distraía-me o movimento apressado dos meus dedos, quase que a dançarem sobre o teclado sincopado, fervilhando de letras, números e símbolos. Definitivamente não sou uma exímia digitadora. Olhei para o teclado, como se assim fazendo me sentisse mais segura do que apareceria no branco luminoso a minha frente. Senti um distanciamento entre idéias, movimentos mecânicos, e o resultado visual do que pensava quando escrevia desta forma. Apagava palavras, recuava, mexia e remexia no texto, tudo sem deixar nenhum rastro. O texto, enfim, emergiu imaculado na tela e, ainda por cima na cor que quisesse, com ou sem rastros, dependendo das minhas habilidades em informática.

Parei. Recuei. Olhei para os meus três velhos amigos abandonados frente a mim e refleti: a minha intimidade é segurar um lápis com as minhas próprias mãos e senti-lo arranhar o papel com as minhas dores.





Maria Eneida Soares Coaracy (Eneida Coaracy) gosta de escrevinhar desde menina, quando escrevia estórias infantis sobre reis e fadas, além de um diário, através do qual se correspondia com uma amiga imaginária. Também escreve poesia e contos. Foi classificada em segundo lugar no Prêmio SESC de Poesia Carlos Drummond de Andrade - Edição 2005, com o poema “A Língua”. Em 2006 classificou-se entre as sete finalistas no Concurso de Poesia OFF-FLIP- Paraty, com o poema “Olho de Ciclone”. NA FLIP 2008, participará do lançamento da Antologia dos Finalistas do Concurso de Poesias 2006/2007. Atualmente, tem se dedicado mais à observação do cotidiano através de pequenas crônicas.


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