Pastiche

Robson Oliveira




Sabe, não tenho nada contra as pessoas que são suscetíveis à moda e se deixam levar pela mídia. Não sou completamente contra a cultura de massa, mas confesso que acho de uma idiotice tremenda viver em função disso como se fosse o mundo real. Comprar revistas que vêm com brindes como um CD de música erudita — diga-se de passagem, muitas vezes essas músicas não vêm completas —, quando não é um pôster de tamanho 420x594, que as pessoas adquirem e ostentam como se fosse um Cézanne ou Monet. Enfim, é algo que procuro sempre sublimar.
Mas, por ironia dessas que só a vida sabe nos pregar, algo me aconteceu no início desse semestre. Ela era linda. Pegava sempre o primeiro ônibus para o Campus. Nesse período, eu já tinha começado a monitoria nas aulas de ética e estava no final de meu curso, filosofia, percebe-se agora por que sou tão crítico! Pois então sempre procurava pegar o mesmo ônibus para vê-la todos os dias. No começo, confesso que não a achei lá essas coisas não; era uma dessas garotas dadas a manias da moda, e a forma como se vestia mostrava que tinha a preocupação de combinar os tênis com as bolsas, o que não deixava de ser interessante, transformando-a no tipo que alguns classificam de fashion. Sua aparência dava a impressão de que tinha acabado de sair da loja, as roupas impecáveis, os cabelos sempre bem tratados, que deixavam sobressair um rosto bonito, mas sem nenhuma maquiagem. Acho que devia ter alguma reação alérgica. Seu perfume era tão agradável, leve, sempre colocado na medida certa para não enjoar.
Sem dúvida, estudava no Campus, mas não tinha idéia que curso fazia. Talvez Direito, pois esse pessoal se preocupa muito com a imagem. Sei que não era Artes Cênicas nem Artes Plásticas, pois esse povo é esculhambado demais.
Como disse, no começo não costumava dar importância a ela, mas não pude deixar de observar que ela estava sempre lendo revistas sobre os lançamentos de filmes. Nas bancas de revistas você encontra mais de sete capas com o mesmo tema, ela devia ter todas. “Especial com o ator de tal filme”, “Entenda tudo sobre o universo tal” e por aí vai. Não sou tão velho, mas tenho certeza de que ela nunca ouvira falar em Alfred Hitchcock. Hoje, por exemplo, o filme era algo sobre magia, está bem em moda atualmente.
Às vezes a surpreendia de longe, dando risadas sozinha quando lia algo que lhe agradava, e a vibração que deixava transparecer dava a impressão de que ela estava assistindo ao Oscar; ao contrário, com um meneio de cabeça desaprovava algo que leu e não gostou. Talvez um dos casamentos que se desfez em Hollywood. Assim a observava, às vezes de longe, às vezes de perto, dependia do local onde me sentava no ônibus. Quando tinha lugar próximo dela vago, não hesitava em sentar. Mas preferia as cadeiras de trás, mas próximo dela, entende? Assim podia observá-la sem que ela percebesse meu interesse.
Muitas vezes me perguntava o que tinha visto nela. Por que tanta atenção numa moça? Só pelo fato de ser bonita? Não, tinha algo mais. Aliás, moças bonitas não faltam por aí. Mas o quê? Hum. Isso será paixão? Amor? Não, definitivamente não! Acho que meu lado filósofo está levantando questões demais. A resposta é simples, estou apenas querendo entender o que leva uma pessoa sem senso crítico sobre si mesma a deixar-se levar por jogadas de marketing. É óbvio que é isso. Claro que é.
Uma vez, ouvi a conversa dela com uma amiga. A propósito, até então nunca tinha ouvido a voz dela, e também nunca tinha visto ela conversando com alguém, estava sempre lendo suas revistinhas. A conversa era sobre direito dos animais. Meu Deus, como são ignorantes! Onde já se viu animais possuírem direitos? O que há é uma extensão do direito humano para a natureza, os animais não protestam porque estão sendo comidos ou porque estão sendo dizimados, para eles tanto faz. Mas, para minha infelicidade, não terminava por aí. O assunto mudou para cinema, até gosto de filmes, há um lançamento nacional que estou louco pra ver, o tema é bem interessante, é uma ficção sobre o futuro do cerrado brasileiro, onde as personagens são um grupo de animais, únicos sobreviventes da destruição do homem. Nesse caso, é uma ficção, e como se trata de uma fábula, estou curioso pra ver a lição de moral que o filme pretende passar. É... Sim, como estava dizendo, o assunto foi para o foco do cinema, começaram a gargalhar sobre a atuação de fulano, que a fala de sicrano estava horrível e que beltrano não servia para o papel por ser um grande canastrão. Hurf! Ainda não entendi o que eu vi nela. Ainda bem que não tardou para o ponto delas chegar.
Um dia, ao ir para o ponto de ônibus, comecei a amadurecer a idéia de me aproximar dela, pra conversar e... quem sabe... mostrar pra ela que o mundo não é só cinema, que há pessoas legais e inteligentes com quem se relacionar e até aprender novas coisas. Concluí que era uma boa idéia.
O ônibus chegou. Entrei no ônibus. Busquei visualizar onde ela estava sentada. O que é aquilo? Ela não estava lendo!? Estava conversando. Não acredito, o que é aquilo? Sentei numa cadeira ao lado, como se nada de estranho estivesse acontecendo. Mantive-me imóvel, olhando pra frente, querendo entender o que ele estava fazendo do lado dela. Até onde sei, ela não era casada, muito menos noiva. Como sabia disso? Ela não usava aliança. Sei que não tinha namorado. Como eu também sabia disso? Ela estava sentada do lado do Anderson, o mago, assim ele se intitula como jogador de RPG. O cara é a figura mais bizarra que há em todo o campus, anda sempre de preto e com a barba por fazer. Sua voz é quase inaudível, a não ser pela sua risada, que igual a dele só conhecia a da Dona Inácia, funcionária da limpeza da faculdade e a do Rabugento, dos clássicos da Hanna Barbera. Não poderia crer que eram namorados, mesmo porque não os vejo agindo como tal. Olha só... estão se respeitando. Ufa! São só amigos, agem como amigos, menos mal.
Depois do susto, no dia seguinte não desisti de minha fantástica idéia de levar a luz para aquela bela, embora oca, criatura. Então, pensei numa estratégia que certamente não falharia. Comprei uma revista dessas que ela vivia lendo. A edição era um especial sobre os filmes chineses, li o suficiente pra ver que nos filmes desse gênero há mais imagens do que assunto. Nesse tipo de filme, só tem “abacaxi”. Nunca vi seres humanos voarem, é muita mentira pra noventa minutos, não sei como tem gente que suporta aquilo.
Entrei no ônibus temeroso com o que ia ver, depois da experiência do dia anterior tinha de estar preparado pra tudo. Lá estava ela. Só ela e sua revista, pra minha felicidade. O lugar ao seu lado está vago, essa é minha chance. Sentei bem devagar segurando o ar em meus pulmões. Estou ao lado dela. Bom, agora, como será minha espetacular iniciativa? A propósito, ela terá uma outra visão da vida depois que conversar comigo e quando me conhecer melhor, certamente nascerá de novo. Suspirei fundo e...
— Oi! Disse eu de forma espontânea, mas contido.
— Olá. Respondeu ela, com um lindo sorriso no rosto e igualmente espontânea.
— O ônibus está mais lento hoje do que de costume, não é verdade? Perguntei para puxar assunto.
— Sim, é verdade. Deve está ficando sem combustível. Disse ela tão segura como se entendesse da mecânica do automóvel.
— É... Talvez seja isso, respondi certo de que ela não entendia nada sobre Termodinâmica. O motor de um veículo tem rendimento padrão enquanto houver combustível em seu tanque. A quantidade nada interferirá em sua velocidade. Mas ignorei o infeliz comentário da moça e me dei por satisfeito por sua beleza.
— Mas espero que tenha o suficiente para chegarmos ao nosso destino. Complementei para não parecer indelicado, mas no íntimo estava sendo irônico.
— É sim. Disse ela.
Não perderei tempo, pois certamente ouvirei algo que não me agradará. Então, vou falar de algo que ela gosta.
— Vejo que você gosta muito de filmes. Sempre que posso, não perco a oportunidade de assistir a um bom filme. Falei olhando para a revista em sua mão.
— Adoro! Procuro estar sempre bem informada. Disse ela sem perder o entusiasmo.
Definitivamente, aquela não era a revista adequada pra quem procura ficar bem informado.
Mas num relance que parece ter ficado parado no tempo, ela toca meu braço com seus esguios dedos. Senti-me aquecido. Lembrei-me do que Einstein havia dito uma vez quando indagado sobre sua teoria: “Para entender a teoria da Relatividade, imagine-se da seguinte forma. Permaneça um minuto sobre uma chapa quente, e esse um minuto parecerá uma hora; mas se passar uma hora com uma bela moça, essa uma hora parecerá um minuto...”
— Que tipo de filme você gosta? Interrompeu ela o meu devaneio. Pena que seu toque foi só para chamar minha atenção.
— Gosto de filmes que abordem algum problema pertinente à sociedade. Disse pra ela com convicção. Não nego que foi uma crítica subliminar ao seu péssimo gosto.
— Que interessante! Disse ela virando-se para mim.
Quando alguém fala olhando diretamente para você, demonstra algo especial que vai além da atenção. Os psicólogos dizem que quando isso acontece, um flerte, a probabilidade de resultar em algo concreto, por exemplo, um namoro, é muito grande.
— Só não gosto desses filmes. Bati com desprezo na revista que tinha comprado pela manhã para ajudar na minha investida.
— Eu gosto tanto dos filmes chineses, acho as roupas tão coloridas, tão alegres, sempre que posso compro algo para mim nesse estilo. Retrucou ela com veemência.
Viu só? Só comprova o que eu imaginava. A bela moça é realmente uma alienada pelo sistema consumista. Agora é minha chance de mostrar pra ela uma visão interessante sobre a vida e quem sabe não a tenho como recompensa.
— Mas a temática desses filmes não tem nada de real. Disse esperando que uma porção racional do seu cérebro começasse a funcionar.
Ela olhou para mim com espanto. Como se o mundo tivesse caído sobre sua linda cabeça. Acho que foi uma revelação e tanto pra ela.
— Sério? Disse ela franzindo a testa.
— Sim. Já parou para pensar? Perguntei.
Agora sim. Sou o dono da situação. Com uma expressão incrédula, ela continuou:
— Você realmente não conhece nada sobre os filmes chineses. Disse ela para meu espanto.
— Mas não precisa saber. É só assistir pra comprovar o que estou falando. Respondi no ato.
Ela começou a coçar a cabeça com impaciência e falou:
— Os filmes desse gênero expressam a poesia chinesa, sem compromisso nenhum com o real. O que se procura passar é a profundeza dos conflitos humanos como as guerras, o amor, e as conquistas, como produto da vaidade e ganância humana. A idéia por trás desses filmes é trabalhar uma filosofia de vida.
Por essa eu não esperava. Preciso sair dessa com classe.
— Mas você não acha preferíveis filmes com um teor mais real e que se preocupem com questões pertinentes à sociedade? Perguntei, apelando para seu suposto senso crítico.
— Sim, gosto muito de documentários também. Disse ela sem vacilar.
Talvez ela não seja tão ingênua quanto imaginei. Tentarei outra investida, dessa vez não aliviarei.
— Eu acho que a indústria cinematográfica não apresenta nada de novo. Tudo que vemos é uma repetição do que já vimos antes, em suma, não se cria nada hoje em dia, tudo se copia. Vivemos numa era de pastiche.
É evidente que ela não terá agora um bom argumento contra o que acabei de falar.
— Não acredito nisso. Disse ela prontamente.
— Não? Perguntei.
Então ela disse.
— Não, porque a arte não é limitada. Há várias formas de se contar a mesma história. Eu acredito sempre numa releitura do que já se produziu, com elementos da época em que se produz, como conseqüência, aprenderemos algo novo. A arte, assim como o homem, é mutante por sua própria natureza. Se pensarmos como você, concluiremos que todos os filmes de psicopatas seriam uma mera repetição de Psicose, só pra citar um exemplo.
Estou me sentindo agora do lado da chapa quente na teoria de Einstein. Ainda por cima, ela mencionou Alfred Hitchcock. Preciso contornar essa situação e sei como. Agora ela não escapa.
— É você tem razão. Toda razão. Que tal irmos ao cinema hoje? Tem uma estréia nacional sobre os animais do cerrado. Parece ser muito bom.
Convidei-a.
— O nome é Fábula de Um Filme Humano, fui eu mesma quem dirigiu.
— Você?
— Sim, sou cineasta. Ah! meu ponto. A propósito. Não vou poder ir com você para a estréia. O Anderson já me convidou para assistirmos ao lançamento juntos, deixa pra próxima. Tchau.
Fiquei perdido em pensamentos, que só foram interrompidos depois de um tempo pelo grito do motorista.
— Desçam, por favor, o carro está sem combustível.


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