Escambo de Natal



— Você já estava acordada, pois não? - disse a agradável voz.
— Claro - ela respondeu, embora “acordada” não descrevesse bem a letargia que a dominava às 8 horas do chuvoso domingo. Seus olhos mal se abriam e um fragmento de sonho esperava ser terminado.
— Então, vamos lá? - convidou a amiga, totalmente desperta e pronta para os acontecimentos do dia.
— Está chovendo. Você acha que vale a pena?
— É só um chuvisco. Vamos à luta!

Compromissos são sagrados, em qualquer circunstância. Reuniu forças para levantar-se, tomou um rápido banho de olhos fechados e esquentou no microondas uma xícara de café do dia anterior. Comeria alguma coisa no clube.

Se o encontrasse. Era sócia, mas o visitara apenas uma vez, há cerca de três anos, e não se lembrava do caminho. O endereço não ajudava, pois, conforme descobriu, o Setor de Clubes Sul era um labirinto com ramificações inimagináveis, levando a lugares que ela nunca supôs existirem. A chuva dificultava a busca ao encobrir os letreiros das raras placas existentes. Após quarenta minutos de idas e voltas, chegou ao destino.

O porteiro não a deixou estacionar dentro da sede. Esquecera a carteirinha, sumida em alguma gaveta — inútil procurá-la. Teve de carregar as sacolas até o local do evento, que também demorou a achar: um canto escondido ao lado do salão de sinuca.

A amiga chegara antes e, muito bem disposta, já providenciara uma mesa e nela estendera a toalha vermelha. Eram oito mesas ao todo, com enorme variedade de produtos: cosméticos da Natura, biscoitos de nata, sandálias e bolsas customizadas, bonecas de feltro, caixas pintadas, incensos gigantes, camisas do Salgueiro e, por último, os livros de crônicas “Velhota, eu?” e “Minha avó botou um ovo”, caprichosamente embalados para presente. A expectativa de vendas era grande pela proximidade do Natal e pelo razoável poder aquisitivo dos freqüentadores, se resolvessem sair de casa no clima duvidoso.

Após arrumar os livros, ela foi em busca de café. No bar náutico, avistou Marilson, membro da diretoria, e graças à sua influência conseguiu uma garrafa do precioso líquido e um pacote de biscoitos de maizena. Levou o colega até o local do bazar, apresentou-o à amiga e mostrou-lhe os livros.
— Quanto é? - ele quis saber.
— Vinte reais - responderam ambas.

Além de servidor público e diretor social do clube, Marilson era iniciado nos mistérios de marketing multinível da Amway e sempre carregava uma pasta 007 com seus produtos. Atualmente, vendia o milagroso suco de Noni (60 reais a garrafa), de enorme sucesso entre as colegas pelo suposto combate aos radicais livres, e o popular sebo de carneiro (40 reais o pote), excelente para dores musculares e do qual era representante exclusivo.

Em breve haveria uma convenção nacional da Amway em Brasília. Quem sabe surpreenderia os diretores presenteando-os com... livros? Abriu a pasta sobre a mesa e propôs:
— Vamos trocar?

Ela era cliente antiga de Marilson. Usava o sebo de carneiro para dores no pescoço, além de recomendar o remédio a diversas pessoas. O pote que tinha em casa estava acabando.

— Troco pelo sebo - ela disse.
— Duas velhotas por um? - calculou ele.
— Feito.

A amiga não conhecia os produtos. Ele explicou em detalhes os benefícios, deu o preço e repetiu a oferta.

— Eu me interesso pelo suco de Noni, Sr. Marilson.
— Três avós por uma garrafa?
— Perfeitamente.

O movimento na mesa nº 8 atraiu os outros participantes. Marilson aproveitou para divulgar seus produtos e adquiriu dois presentes que faltavam: um par de sandálias para a esposa, por um sebo e um suco; e uma boneca de feltro para a filha, por dois sebos. Resolveu também se presentear e barganhou duas ampolas de óleo terapêutico por uma camisa do Salgueiro, que vestiu na hora.

A senhora dos incensos gigantes trocou três pacotes pelo livro da velhota; a revendedora da Natura negociou um refil de sabonete de erva doce pelo livro da avó; a moça dos biscoitos de nata deu dez caixas por uma bolsa customizada. A barganha intensificou-se a tal ponto que, quando o tempo abriu e os compradores começaram a chegar, o estoque dos feirantes acabara.

Ao final, ela convidou Marilson e a amiga para uma foto que pretendia postar no novo fotolog. Os três posaram sorridentes, satisfeitos com o resultado dos negócios.

À noite, depois de completar o sono que lhe faltara pela manhã, ela salvou a foto no computador para editá-la. Três figuras sem cabeça apareceram na tela: dois troncos femininos, um esbelto e outro mais robusto, mostravam artigos diversos, e um tronco masculino, vestindo a camisa do Salgueiro, segurava com firmeza uma pasta 007 recheada com o escambo de Natal.

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