Ele & Elas










“O ESPAÇO CULTURAL CONVIDA PARA SARAU LITERÁRIO-MUSICAL A REALIZAR-SE QUINTA-FEIRA, ÀS 20H.”


Há uma semana ele não dormia direito. O ensaio dera muito trabalho: elas conversavam feito crianças, e teve de ameaçar atingi-las com o sapato para que ficassem quietas. Estava deprimido, como sempre acontecia antes dos saraus, ainda mais este, em que sua própria obra seria lida. O livro que ia lançar não ficara pronto.

Acordou cedo, fez ioga, meditação e tai-chi para enfrentar o longo dia. Faltavam mil acertos de última hora. Esperava ter atendido a todas. Será que esquecera alguma?

Às 8 horas, o telefone começou a tocar.

Eram elas.

Ela nº 1. Estava magoada porque ele não a chamara para a frente do palco. — O cenário deve estar uma droga, - pensou, prometendo a si mesma que pela última vez participava do maldito sarau. Chegou mais cedo, para ler os textos que ele só lhe enviara no último minuto. Planejou uma pequena vingança: não rir de nenhuma piada que ele contasse, nem comprar o livro que ele ia lançar em seguida no coquetel.

Ela nº 2. Seu telefone estava cortado, e o cheque da dentista ia entrar sem fundos. Pegou um vestido emprestado da irmã, pendurou a conta no salão e rezou para que o bolão da Mega-Sena desta vez desse resultado. Ele lhe dera o lugar central no palco. Será que estava interessado nela? — Preciso lhe dizer que jogo no outro time, - decidiu, enquanto se depilava. Pôs 10 reais de gasolina e enfrentou o engarrafamento do tratoraço.

Ela nº 3. Não conseguira decorar o texto. Masturbara-se muito na noite anterior para relaxar. Teve de fazê-lo manualmente, porque o vibrador estava sem pilhas. Não gozou, mas ficou tão cansada que pegou logo no sono e dormiu profundamente. Sonhou com ele: estavam numa cidade estranha, e ele não a reconhecia. Tinha o hábito de analisar os sonhos logo que acordava. — Acho que ele não gosta de mim, - deduziu, triste, e foi para a ginástica na quadra.

Ela nº 4. Estava apaixonada por ele, e acreditava ser correspondida. Ele lhe dirigia olhares meigos e parecia dizer o nome dela num tom diferente do que usava para as outras 49 participantes das oficinas. Ouviu dizer que ele era metrossexual e pesquisou a respeito na Internet. Na primeira oportunidade, demonstraria conhecimento do assunto.
...

Ela nº 50. Amanheceu com uma cólica horrorosa. Tinha de terminar a crônica sobre o papel socioeconômico das mulheres indígenas brasileiras no contexto da globalização e começar outra sobre as causas psicossociais da não-concessão de preferência no trânsito por 80% das motoristas brasilienses. Ele lhe dera um texto complexo sobre conflitos inerentes à dualidade alma/corpo em face do presencialismo. Não entendeu nada, mas parecia profundo. Sabia que ele confiava nela, e não o decepcionaria.

Faltam poucos minutos para as 20h. Ele faz uma prece, elas esquecem as dúvidas e as mágoas, e juntos eles sobem ao palco para mais uma noite de grande emoção.

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