O pequeno capitão

— Mãe, se eu fizer uma pergunta, você não fica triste, deprimida, nem com cara de preocupada?
— Não - respondeu a mulher, já acostumada com a abordagem do filho.
— Jura?
— Juro.
— Como se faz uma adoção?
Chegara o doloroso momento que ela vinha adiando e do qual não podia mais fugir. Tentou desconversar:
— De bebês?
— Não, mãe, de animais.
Ficou calada, esperando que ele desviasse a atenção para outro assunto. Sabia bem aonde a conversa ia levar. Ele lhe estendeu um papel:
— Está aqui o número do canil. Deu na televisão. Posso? Posso? Posso?
— Pode - ela concordou, refém da velha promessa e do olhar suplicante. Há algum tempo ele vinha pedindo um cachorro. Nas longas férias de janeiro, sentiu-se só e voltou a insistir no pedido.
— Tem certeza? Tem certeza de que tem certeza? Você está brava comigo? Não mesmo?
— Sim, sim, não, não.
Estava prestes a se iniciar a terceira experiência canina da pequena família. A primeira: Vivi, Yorkshire emotiva e carente, objeto de abaixo-assinado no prédio devido ao tumulto que provocava se deixada sozinha. Adotada pela babá, que ainda hoje traz notícias da cadelinha já anciã. A segunda: Jerry, salsicha tranqüilo e auto-suficiente, de pouco latido, mas que se ocupava roendo os móveis. Dado a um casal com crianças e rebatizado de Chicão. Situação atual ignorada. Com Skipper — nome já escolhido pelo filho — seria diferente, a mulher prometeu a si mesma.
Uma vez decidido o inevitável, convocou o ex-marido, entendedor de cachorros e outros bichos, para procurar um filhote. Pai e filho percorreram vários canis até encontrar um exemplar de raça exótica — Schipperke — e de linhagem nobre: herdeiro legítimo de Lady Sofie de Baktharan e Lorde Ivo de Baktharan. Por telefone, ela autorizou a compra. Custava uma pequena fortuna, mas tudo bem, desde que o menino ficasse feliz.
Chegou em casa à noite, curiosa para conhecer o filhote. Deparou com um cachorro preto, de pêlo brilhoso, parecido com um lobinho. Tinha uma aparência comum e na rua talvez fosse confundido com um vira-lata bem cuidado.
Ela esperava algo mais exótico, porém, não mostrou a decepção.
Na fonte das fontes descobriu que a raça era originária da Holanda, onde o nome significava “pequeno capitão”, e que esses cães serviam tradicionalmente de guarda nos barcos holandeses, nos quais ajudavam a capturar ratos. Não havia ratos no apartamento, mas, quem sabe, um dia, mãe e filho teriam um barco?
Esperançosos, compraram o Pipi Dog e o aspergiram num canto escondido para que Skipper fizesse ali suas necessidades. Adotaram a tática do rolo de jornal para corrigi-lo, especialmente quando se aproximava do novíssimo sofá branco.
Nos primeiros dias, o filhote dormiu muito e latiu pouco. Era de temperamento reservado, como o deles. Vivia no colo ou na cama do menino, até que as aulas recomeçaram e, com elas, outras distrações. Navegar no MSN era mais divertido que tomar conta de cachorro, e este foi deixado aos cuidados da mãe humana. Tudo bem, ela já se apegara ao lobinho.
À medida que se sentiu à vontade, Skipper começou a latir mais alto e com maior freqüência. Só dormia embaixo da cama da mãe, tomou gosto pelo passeio matinal e o exigia assim que acordava, por volta de 5 horas da madrugada, com o latido firme e o olhar decidido. Ela precisava mesmo se exercitar e o sol da manhã era ótimo para prevenir a osteoporose.
Passaram-se três meses. Apesar do esforço inicial, nenhuma das medidas educativas funcionou. O cão escolheu seus próprios locais para as necessidades n° 1 e n° 2, respectivamente, o ponto central da sala e a porta de entrada. A casa, as roupas, a alma cheiravam a cachorro.
Chegam as férias de julho. Skipper já fez o passeio matinal e agora corre no jardim. Na noite anterior capturou o primeiro rato. O casal idoso do Park Way que adotou o maldito cachorro o observa com orgulho.
Enquanto o pequeno capitão navega outros mares, a mulher acorda devagar no apartamento, espreguiça-se e espera o café da manhã que a secretária lhe traz na cama, pontualmente, às 8h20min. Sorri, satisfeita: a vida voltou ao normal, foi-se o cheiro, o latido, o cachorro.
O rosto do menino aparece à porta:
— Mãe, se eu fizer uma pergunta...
— ...
— Por que todos os brinquedos maneiros são importados?
Ela saboreia o café, aliviada, antes de convocar o ex-marido para levar o filho à Feira do Paraguai.

Comentários

  1. Amei, Luci!!
    Aqui, vamos fazer a seguinte experiência: a cadelinha salsicha pertencente a avó vai passar duas semanas de férias e estágio probatório na residência da filha incorfomada e carente de um amigo canino. Vamos ver no que vai dar...
    Espero que o final seja semelhante ao seu - que ela possa voltar feliz a sua residência em Caldas Novas e que, aqui, todos vivam (e durmam) tranqüilos para sempre!
    Deixei uma surpresinha para você no meu blog. Depois, "passa" lá.
    Bjs, Juliana.

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