Dente de Coelho
— Quando a senhora se sentir apta a tratar os dentes, me procure. - O endodontista bateu o telefone. Por que estava com raiva? Ela só desmarcara três consultas, e por um bom motivo: estava no auge da TPM. Enfrentar o motorzinho nessas condições seria tortura. Magoada, não o procurou novamente.
Próximo na lista: Dr. Teógino, cirurgião-dentista indicado por uma amiga, que abrira bem a boca para lhe mostrar o trabalho que ele fizera. Parecia bom. Marcou e foi.
— Tenho um medo de dentista! - Ela disse, tentando sorrir. Sempre os alertava.
O Dr. Teógino pareceu não ouvir:
— Seus dentes estão péssimos! Preciso refazer tudo - Ele já calculava, mentalmente, quanto poderia cobrar. Estava num aperto danado.
Sentiu pena dele: era quase um anão, a voz desproporcionalmente grossa. Tinha barba de bode. Deixara aberto na mesa um antigo livro ilustrado de dentística para impressioná-la.
— Então, está disposta? - indagou, esperançoso. Precisava retomar a clientela, pois abandonara a profissão por vários meses, depois de ser traído pela esposa com o protético. A mulher lhe arrancara a casa, os bens e os filhos. Ele decidira se aventurar no comércio, mas não levava jeito. Trocara o empreendimento falido por um lote num condomínio distante, onde reconstruía a vida com a segunda esposa, bem mais jovem, e o filho que acabara de nascer.
Ele repetiu a pergunta. Cansada de peregrinar por tantos consultórios, ela resolveu apostar na indicação da amiga. Deixou as radiografias e marcou a primeira consulta. Ele lhe pediu uns cheques adiantados, para trocar no factoring.
Por medida de economia, o Dr. Teógino aproveitava a nova esposa como assistente. Só havia um problema: ela não suportava ver sangue. Por isso, segurava com força o sugador e fechava bem os olhos. Não tinha paciência para ficar sentada muito tempo e, sempre que podia, dava uma desculpa para ir conversar com as moças da portaria: — Vou lá embaixo buscar os moldes, meu bem. Volto já. - Ele continuava o trabalho sozinho, resmungando.
— Não dou sorte mesmo!
Enquanto esperava secar a resina, olhava pela janela e contava sua infância triste no interior. Muito pobre, se formara com sacrifício e guardava grandes mágoas daquele tempo. Ele se emocionava, os olhos ficavam úmidos.
— Aquelas ladeiras! Tem coisa que a gente nunca esquece... - Ela concordava, balançando a cabeça.
Nas primeiras consultas, tudo transcorreu bem, apesar do nervosismo dos três. Ela saía aliviada, pensando que agora fizera a escolha certa.
Na quarta vez, o Dr. Teógino chegou abatido: passara a noite em claro, com a espingarda em punho, à espreita de um mucura que atacava seu galinheiro em busca de ovos. Não conseguira pegar o bicho. A esposa também não dormira bem. Estavam atrasados e se ajeitaram às pressas para o atendimento.
Anestesia aplicada, sugador posicionado com firmeza, motorzinho à máxima potência, ele se lembrou, com raiva, do mucura e dos tempos de menino. Distraiu-se por um momento com suas recordações, esqueceu o que estava fazendo e deixou escorregar a broca. Seus óculos se cobriram de vermelho.
Ela gritou, assustada: o aparelho lhe fizera um corte profundo na língua. A assistente saiu correndo da sala, enquanto o dentista, tentando manter a calma, lhe enchia a boca de gaze para estancar o sangue.
— Não se preocupe, isso acontece. Esta região é muito rica em vasos. - Com três pontos na boca, ela ficou dias sem poder falar nem comer direito. Não voltou mais, apesar da insistência dele, e sustou os cheques.
Depois de algumas semanas, deparou com um anúncio: Dra. Clélia, especialista em dentística e hipnodontia — pesquisou esta palavra na Internet e ficou animada com o que descobriu. Quem sabe era melhor procurar uma mulher? A mão, pelo menos, seria mais leve, e o tratamento sob hipnose, certamente, mais fácil. Imaginou-se flutuando, inconsciente, sem medo nem dor, enquanto uma mão delicada e maternal cuidava de seus dentes. Acordaria de um sono repousante e não se lembraria de nada.
Simpatizaram-se de imediato. Depois de uma sessão de relaxamento na poltrona magnética e de uma deliciosa massagem nos músculos faciais, abriu a boca, confiante. Há muito tempo não se sentia tão bem. Ao fundo, a música tranqüila da Enya, combinada com uma essência calmante de flor de laranjeira. Dormiu profundamente, sonhou que era criança e que brincava de roda no sol morno do fim de tarde.
— Pode acordar agora, querida! - Uma voz suave a chamava, de longe. Ela despertou aos poucos, espreguiçou-se e pegou o espelho que a Dra. Clélia lhe dava, sorrindo. — Veja como ficou bonito!
Ela olhou, curiosa, e sentiu um arrepio de horror: no lugar dos incisivos, estavam implantados dois enormes dentes de coelho.
— Feliz Páscoa! - gritou a hipnodontista, às gargalhadas. Ela achou graça e começou a rir também. As duas se deram as mãos e giraram pela sala, cada vez mais rápido, rindo e cantando alto, até que ela acordou, desta vez de verdade.
De manhã consultaria novamente a lista.
Próximo na lista: Dr. Teógino, cirurgião-dentista indicado por uma amiga, que abrira bem a boca para lhe mostrar o trabalho que ele fizera. Parecia bom. Marcou e foi.
— Tenho um medo de dentista! - Ela disse, tentando sorrir. Sempre os alertava.
O Dr. Teógino pareceu não ouvir:
— Seus dentes estão péssimos! Preciso refazer tudo - Ele já calculava, mentalmente, quanto poderia cobrar. Estava num aperto danado.
Sentiu pena dele: era quase um anão, a voz desproporcionalmente grossa. Tinha barba de bode. Deixara aberto na mesa um antigo livro ilustrado de dentística para impressioná-la.
— Então, está disposta? - indagou, esperançoso. Precisava retomar a clientela, pois abandonara a profissão por vários meses, depois de ser traído pela esposa com o protético. A mulher lhe arrancara a casa, os bens e os filhos. Ele decidira se aventurar no comércio, mas não levava jeito. Trocara o empreendimento falido por um lote num condomínio distante, onde reconstruía a vida com a segunda esposa, bem mais jovem, e o filho que acabara de nascer.
Ele repetiu a pergunta. Cansada de peregrinar por tantos consultórios, ela resolveu apostar na indicação da amiga. Deixou as radiografias e marcou a primeira consulta. Ele lhe pediu uns cheques adiantados, para trocar no factoring.
Por medida de economia, o Dr. Teógino aproveitava a nova esposa como assistente. Só havia um problema: ela não suportava ver sangue. Por isso, segurava com força o sugador e fechava bem os olhos. Não tinha paciência para ficar sentada muito tempo e, sempre que podia, dava uma desculpa para ir conversar com as moças da portaria: — Vou lá embaixo buscar os moldes, meu bem. Volto já. - Ele continuava o trabalho sozinho, resmungando.
— Não dou sorte mesmo!
Enquanto esperava secar a resina, olhava pela janela e contava sua infância triste no interior. Muito pobre, se formara com sacrifício e guardava grandes mágoas daquele tempo. Ele se emocionava, os olhos ficavam úmidos.
— Aquelas ladeiras! Tem coisa que a gente nunca esquece... - Ela concordava, balançando a cabeça.
Nas primeiras consultas, tudo transcorreu bem, apesar do nervosismo dos três. Ela saía aliviada, pensando que agora fizera a escolha certa.
Na quarta vez, o Dr. Teógino chegou abatido: passara a noite em claro, com a espingarda em punho, à espreita de um mucura que atacava seu galinheiro em busca de ovos. Não conseguira pegar o bicho. A esposa também não dormira bem. Estavam atrasados e se ajeitaram às pressas para o atendimento.
Anestesia aplicada, sugador posicionado com firmeza, motorzinho à máxima potência, ele se lembrou, com raiva, do mucura e dos tempos de menino. Distraiu-se por um momento com suas recordações, esqueceu o que estava fazendo e deixou escorregar a broca. Seus óculos se cobriram de vermelho.
Ela gritou, assustada: o aparelho lhe fizera um corte profundo na língua. A assistente saiu correndo da sala, enquanto o dentista, tentando manter a calma, lhe enchia a boca de gaze para estancar o sangue.
— Não se preocupe, isso acontece. Esta região é muito rica em vasos. - Com três pontos na boca, ela ficou dias sem poder falar nem comer direito. Não voltou mais, apesar da insistência dele, e sustou os cheques.
Depois de algumas semanas, deparou com um anúncio: Dra. Clélia, especialista em dentística e hipnodontia — pesquisou esta palavra na Internet e ficou animada com o que descobriu. Quem sabe era melhor procurar uma mulher? A mão, pelo menos, seria mais leve, e o tratamento sob hipnose, certamente, mais fácil. Imaginou-se flutuando, inconsciente, sem medo nem dor, enquanto uma mão delicada e maternal cuidava de seus dentes. Acordaria de um sono repousante e não se lembraria de nada.
Simpatizaram-se de imediato. Depois de uma sessão de relaxamento na poltrona magnética e de uma deliciosa massagem nos músculos faciais, abriu a boca, confiante. Há muito tempo não se sentia tão bem. Ao fundo, a música tranqüila da Enya, combinada com uma essência calmante de flor de laranjeira. Dormiu profundamente, sonhou que era criança e que brincava de roda no sol morno do fim de tarde.
— Pode acordar agora, querida! - Uma voz suave a chamava, de longe. Ela despertou aos poucos, espreguiçou-se e pegou o espelho que a Dra. Clélia lhe dava, sorrindo. — Veja como ficou bonito!
Ela olhou, curiosa, e sentiu um arrepio de horror: no lugar dos incisivos, estavam implantados dois enormes dentes de coelho.
— Feliz Páscoa! - gritou a hipnodontista, às gargalhadas. Ela achou graça e começou a rir também. As duas se deram as mãos e giraram pela sala, cada vez mais rápido, rindo e cantando alto, até que ela acordou, desta vez de verdade.
De manhã consultaria novamente a lista.
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