Menininha
Mil passos até a Igreja Matriz, onde foi batizada e recebeu a primeira comunhão. No sábado à tarde, sempre encontrava a porta fechada quando ia se confessar. No domingo de manhã, vestido bordado, meias três-quartos e sapatos de verniz, ajoelhava-se sob o olhar indecifrável dos anjos, temerosa de haver cometido algum pecado.
Quinhentos passos até o grupo escolar, onde Dona Lourdes, a faxineira, a consolava quando as outras meninas não a deixavam entrar na roda. No dia da padroeira, era escolhida entre todas as alunas para coroar Nossa Senhora Aparecida e, de roupa branca, subia trêmula e solene os degraus até a estátua de manto azul.
Duzentos passos até a lojinha da Boa Vista, onde uma vez cobiçou um diadema cor-de-rosa na vitrine. Voltava toda semana para comprá-lo, mas já fora vendido e outro estava para chegar. Depois de algum tempo, teve a certeza de que jamais conseguiria o que desejasse — melhor não querer.
Cem passos até a Rua São Vicente, onde brincava em bandos, alheia, por um breve momento, às despedidas que já se anunciavam. O asfalto cobriu os pequenos rastros e os carros abafaram os gritos do pique-pega ou da caça ao tesouro.
Cinqüenta passos até o alpendre de casa, onde era criticada com veemência por gigantes enfurecidos. Imaginou se vingar desistindo de tudo o que pudesse lhe trazer alegria, punindo-se em dobro a cada ato de desamor.
Um passo até o espelho, onde aguardei a vida inteira para aconchegá-la em meus braços. Ela se aproxima no vestido bordado, meias três-quartos, sapatos de verniz e descansa no meu colo, certa de não haver cometido nenhum pecado.
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