Cala a boca, cachorro!
Acabamos de nos mudar para o apto. 105. Quem mais sente a mudança é nossa cadelinha Vivi, que, acostumada a ficar solta na chácara durante quase cinco anos, agora está confinada.
No primeiro dia, nervosa, faz o n° 1 no elevador, por azar, no momento em que o vizinho do 106 desce, descalço, para pegar o jornal. Ele pisa na poça, percebe o que é e vai direto reclamar à síndica.
Recebo a primeira notificação do condomínio, lembrando os cuidados necessários com os animais. Curiosamente, o cachorro da síndica, seu amigo inseparável, tem livre trânsito no prédio. Engulo a advertência.
Vivi está mais calma. Uma manhã, porém, não se segura a caminho do parque e faz o n° 2 ali mesmo na escada — a empregada tinha sido instruída a não mais usar o elevador. O vizinho também não o usa mais e sai nesse instante para o trabalho. Desce, apressado, e resmunga quando um chiclete parece pregar no sapato. Chegando à garagem, olha melhor e dá um grito ouvido em toda a vizinhança. Segunda notificação, ameaçando o descumpridor das regras com multas.
Passam-se algumas semanas. No domingo, eu mesma levo Vivi para passear. Ponho sua coleira. Saímos. A luz do corredor está queimada, e levo um minuto para encontrar a chave. Uma porta se abre, de repente, um vulto aparece na escuridão e ela avança nele, para me proteger. O vizinho do 106 vai à lixeira, solta um urro e volta correndo para o apartamento. Desta vez, a carta do condomínio cita artigos do Código Penal.
Três meses sem incidentes. É sábado. Vou passar a noite fora e não posso levar Vivi. Arrumo sua caminha, ponho ao lado água, comida, brinquedos e saio, tranqüila. No dia seguinte, o porteiro me informa que ninguém dormiu no prédio porque ela uivou e arranhou a porta a noite toda. O vizinho do lado também passou a noite gritando com ela para que calasse a boca, sem sucesso. Começo a pensar em levá-la de volta, mas seu olhar meigo me comove. Resolvo não deixá-la mais sozinha.
Alguém bate à minha porta. É ele.
— A senhora sabe o que aconteceu? Por que não opera as cordas vocais dela? Eu não agüento mais! - E desabafa: no apartamento de cima, dois cachorros latem sem parar e não o deixam dormir; agora que Vivi mora ao lado, ele olha duas vezes antes de pisar no corredor; em frente, um Rotweiller enorme e feroz rosna sempre que o vê.
Eu lhe respondo que não maltrato animais e sugiro que vá morar numa casa ou num local mais distante. Ele se sente indignado, e avisa que fará abaixo-assinado para expulsar Vivi. Escrevo carta de desabafo ao Correio Braziliense, que é publicada sob o título Preconceito. Muitos leitores se solidarizam comigo. Um deles sugere uma campanha: Salvem Vivi! O caso gera polêmica e, depois, cai no esquecimento.
Faz um ano que moramos no apto. 105. O abaixo-assinado obteve poucas assinaturas e foi arquivado. Vivi andava triste e está de novo na chácara, onde corre atrás de passarinhos, borboletas e outros bichos sem incomodar ninguém. O vizinho do 106 se mudou. Os cachorros continuam latindo.
No primeiro dia, nervosa, faz o n° 1 no elevador, por azar, no momento em que o vizinho do 106 desce, descalço, para pegar o jornal. Ele pisa na poça, percebe o que é e vai direto reclamar à síndica.
Recebo a primeira notificação do condomínio, lembrando os cuidados necessários com os animais. Curiosamente, o cachorro da síndica, seu amigo inseparável, tem livre trânsito no prédio. Engulo a advertência.
Vivi está mais calma. Uma manhã, porém, não se segura a caminho do parque e faz o n° 2 ali mesmo na escada — a empregada tinha sido instruída a não mais usar o elevador. O vizinho também não o usa mais e sai nesse instante para o trabalho. Desce, apressado, e resmunga quando um chiclete parece pregar no sapato. Chegando à garagem, olha melhor e dá um grito ouvido em toda a vizinhança. Segunda notificação, ameaçando o descumpridor das regras com multas.
Passam-se algumas semanas. No domingo, eu mesma levo Vivi para passear. Ponho sua coleira. Saímos. A luz do corredor está queimada, e levo um minuto para encontrar a chave. Uma porta se abre, de repente, um vulto aparece na escuridão e ela avança nele, para me proteger. O vizinho do 106 vai à lixeira, solta um urro e volta correndo para o apartamento. Desta vez, a carta do condomínio cita artigos do Código Penal.
Três meses sem incidentes. É sábado. Vou passar a noite fora e não posso levar Vivi. Arrumo sua caminha, ponho ao lado água, comida, brinquedos e saio, tranqüila. No dia seguinte, o porteiro me informa que ninguém dormiu no prédio porque ela uivou e arranhou a porta a noite toda. O vizinho do lado também passou a noite gritando com ela para que calasse a boca, sem sucesso. Começo a pensar em levá-la de volta, mas seu olhar meigo me comove. Resolvo não deixá-la mais sozinha.
Alguém bate à minha porta. É ele.
— A senhora sabe o que aconteceu? Por que não opera as cordas vocais dela? Eu não agüento mais! - E desabafa: no apartamento de cima, dois cachorros latem sem parar e não o deixam dormir; agora que Vivi mora ao lado, ele olha duas vezes antes de pisar no corredor; em frente, um Rotweiller enorme e feroz rosna sempre que o vê.
Eu lhe respondo que não maltrato animais e sugiro que vá morar numa casa ou num local mais distante. Ele se sente indignado, e avisa que fará abaixo-assinado para expulsar Vivi. Escrevo carta de desabafo ao Correio Braziliense, que é publicada sob o título Preconceito. Muitos leitores se solidarizam comigo. Um deles sugere uma campanha: Salvem Vivi! O caso gera polêmica e, depois, cai no esquecimento.
Faz um ano que moramos no apto. 105. O abaixo-assinado obteve poucas assinaturas e foi arquivado. Vivi andava triste e está de novo na chácara, onde corre atrás de passarinhos, borboletas e outros bichos sem incomodar ninguém. O vizinho do 106 se mudou. Os cachorros continuam latindo.
(Vivi morreu no mês passado. Que esteja em paz no céu dos cachorros!)
Crianças. Animais de estimação. Seres a que nos acostumamos. Com o passar do tempo aprendemos a amá-los. Como sempre, brilhante crônica.
ResponderExcluirEu já li esta crônica uma outra vez aqui mesmo. Reli e gostei de novo.
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