Uma casa para Loíde
Foi vê-la logo cedo. Tinha que dar certo, era o preço que ela podia pagar. Subiu e dobrou algumas ruas, até dar de cara com o cemitério. Debaixo da placa, Corpo Santo, uns pássaros pretos pequenos. Pareciam filhotes de urubu, mas não tinha certeza. Nos muros rabiscados, ela gostou especialmente de algumas mensagens: “Vá com Deus, e fique por lá”; “A terra comeu seu cadáver, mas não vai engolir nosso amor”; “Querida, me espere: estou chegando”. Leu todas, por curiosidade.
Chegou ao endereço no jornal. A casa era verde-clara e também tinha um nome: Pensão das Margaridas. No jardim, canteiros com rosas miúdas, as suas preferidas. Teve um bom pressentimento. Abriu a porta com a chave da imobiliária e parou, surpresa: as paredes tinham tantos rabiscos quanto o muro do cemitério, só que mais desbotados. Começou a analisá-los.
As figuras pareciam as que enfeitavam as portas dos banheiros no ginásio, os quais, aliás, sempre fediam muito. Definitivamente, estava ali retratada a anatomia íntima masculina — membros de todos os tamanhos, alguns gigantescos, sempre eretos, ilustravam os diversos aposentos. Muitos desenhos eram simples traços. Outros, mais elaborados, representavam o órgão em detalhes. Havia também frases, mas com palavrões tão cabeludos que ela só teve coragem de lê-los silenciosamente. Notou que as lâmpadas eram vermelhas.
— Aqui moravam duas prostitutas - disse a moça que acabava de chegar à porta.
— Prostitutas?
— É, aqui é o fim da zona.
— O que aconteceu com elas?
— Mudaram de cidade.
— Por causa do cemitério?
Chegou ao endereço no jornal. A casa era verde-clara e também tinha um nome: Pensão das Margaridas. No jardim, canteiros com rosas miúdas, as suas preferidas. Teve um bom pressentimento. Abriu a porta com a chave da imobiliária e parou, surpresa: as paredes tinham tantos rabiscos quanto o muro do cemitério, só que mais desbotados. Começou a analisá-los.
As figuras pareciam as que enfeitavam as portas dos banheiros no ginásio, os quais, aliás, sempre fediam muito. Definitivamente, estava ali retratada a anatomia íntima masculina — membros de todos os tamanhos, alguns gigantescos, sempre eretos, ilustravam os diversos aposentos. Muitos desenhos eram simples traços. Outros, mais elaborados, representavam o órgão em detalhes. Havia também frases, mas com palavrões tão cabeludos que ela só teve coragem de lê-los silenciosamente. Notou que as lâmpadas eram vermelhas.
— Aqui moravam duas prostitutas - disse a moça que acabava de chegar à porta.
— Prostitutas?
— É, aqui é o fim da zona.
— O que aconteceu com elas?
— Mudaram de cidade.
— Por causa do cemitério?
— Não, ele nunca atrapalhou o movimento. Não gostavam muito da casa.
Desistiu do negócio. Partiu para a segunda opção, um terreno do cunhado, que ele estava muito interessado em lhe vender. Talvez até fizesse um preço melhor, já que eram parentes. A localização era boa, dava para ir à missa e à banca de revistas a pé. Foi vê-lo, animada.
Era uma casa muito, muito velha. A primeira coisa que notou foi o vira-lata no portão. Depois, a cerca desdentada, as paredes no reboco. O quintal era escurecido pela sombra de mangueiras enormes. O cachorro dormia, mas acordou com seus passos e, quando a viu, começou a rosnar e veio em sua direção. Ela tremeu, porque já havia sido mordida e se lembrava bem de como doía. Preparava-se para correr quando, ao ouvir um assobio vindo de dentro da casa, o animal disparou para o quintal, assustado.
Alguém a observava atrás de uma persiana caindo aos pedaços. A casa estava completamente silenciosa. Os passarinhos tinham parado de cantar nas mangueiras. Passaram-se alguns minutos até que o homem perguntou:
— O que você quer?
— Eu sou cunhada do Dr. Bené, dono da casa, e eu vim olhar...
— Dr. Bené? Não conheço ninguém com esse nome.
— Ele é dono dessa casa, e eu quero comprar...
— A casa é da minha mãe, Filomena.
— Pois é, sua mãe era cozinheira do Bené, e ele emprestou a casa para ela morar. Preciso falar com a Filomena. Cadê ela?
Desistiu do negócio. Partiu para a segunda opção, um terreno do cunhado, que ele estava muito interessado em lhe vender. Talvez até fizesse um preço melhor, já que eram parentes. A localização era boa, dava para ir à missa e à banca de revistas a pé. Foi vê-lo, animada.
Era uma casa muito, muito velha. A primeira coisa que notou foi o vira-lata no portão. Depois, a cerca desdentada, as paredes no reboco. O quintal era escurecido pela sombra de mangueiras enormes. O cachorro dormia, mas acordou com seus passos e, quando a viu, começou a rosnar e veio em sua direção. Ela tremeu, porque já havia sido mordida e se lembrava bem de como doía. Preparava-se para correr quando, ao ouvir um assobio vindo de dentro da casa, o animal disparou para o quintal, assustado.
Alguém a observava atrás de uma persiana caindo aos pedaços. A casa estava completamente silenciosa. Os passarinhos tinham parado de cantar nas mangueiras. Passaram-se alguns minutos até que o homem perguntou:
— O que você quer?
— Eu sou cunhada do Dr. Bené, dono da casa, e eu vim olhar...
— Dr. Bené? Não conheço ninguém com esse nome.
— Ele é dono dessa casa, e eu quero comprar...
— A casa é da minha mãe, Filomena.
— Pois é, sua mãe era cozinheira do Bené, e ele emprestou a casa para ela morar. Preciso falar com a Filomena. Cadê ela?
— Morreu. A casa é minha tem mais de dez anos, e eu também só saio daqui morto. Morto, ouviu? - e fechou a persiana.
Ela ia insistir quando lembrou que era esperada no cartório para assinar a escritura do pequeno apartamento que acabara de vender. No caminho, pegou a irmã mais velha, que a havia ajudado a fechar o negócio por telefone e que fazia questão de acompanhá-la para se certificar de que estava tudo certo. Era muito teimosa e desconfiada, e tinha o hábito de dizer o que pensava.
— Estamos atrasadas.
— O quê? - a outra só escutava um pouco do ouvido esquerdo.
— Atrasadas! - ela repetiu umas três vezes, a voz progressivamente mais alta.
— Precisamos ter cuidado, existe muito trambiqueiro por aí.
Já no cartório, a irmã achou que era falso o documento que o comprador apresentava:
Ela ia insistir quando lembrou que era esperada no cartório para assinar a escritura do pequeno apartamento que acabara de vender. No caminho, pegou a irmã mais velha, que a havia ajudado a fechar o negócio por telefone e que fazia questão de acompanhá-la para se certificar de que estava tudo certo. Era muito teimosa e desconfiada, e tinha o hábito de dizer o que pensava.
— Estamos atrasadas.
— O quê? - a outra só escutava um pouco do ouvido esquerdo.
— Atrasadas! - ela repetiu umas três vezes, a voz progressivamente mais alta.
— Precisamos ter cuidado, existe muito trambiqueiro por aí.
Já no cartório, a irmã achou que era falso o documento que o comprador apresentava:
— Tem muito trambiqueiro por aí - repetiu, baixinho, desta vez encarando o homem. - Vou ali na Caixa ver se é isso mesmo.
Pegou a escritura e foi. Demorou quase duas horas, e o corretor teve de ir atrás dela. Na volta, ela entregou os papéis e disse apenas, sem olhar para ninguém:
— É isso mesmo. Pode assinar.
Muito tarde — o homem, enfurecido, havia mudado de idéia e ido embora.
Só lhe restava colocar novo anúncio nos classificados e rezar. Deixou a irmã em casa e foi para a missa. Depois, passaria na banca para ver se chegara o novo número da Contigo. Estava ansiosa para ler sobre a surra na Nazaré, vilã da novela das oito.
— Amanhã é outro dia, pensava.
Pegou a escritura e foi. Demorou quase duas horas, e o corretor teve de ir atrás dela. Na volta, ela entregou os papéis e disse apenas, sem olhar para ninguém:
— É isso mesmo. Pode assinar.
Muito tarde — o homem, enfurecido, havia mudado de idéia e ido embora.
Só lhe restava colocar novo anúncio nos classificados e rezar. Deixou a irmã em casa e foi para a missa. Depois, passaria na banca para ver se chegara o novo número da Contigo. Estava ansiosa para ler sobre a surra na Nazaré, vilã da novela das oito.
— Amanhã é outro dia, pensava.
( Literatura de Câmara, vol. 1, 2004)
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