Se precisar de mim...
— Se precisar de mim, não conte comigo – disse ele, encarando-a com o olhar opaco de vidro.
Ela pensou ter entendido mal:
— Como? – perguntou, enxugando as lágrimas.
— Se precisar de mim, não conte comigo. A não ser nos 50 minutos da sessão, é claro. Amanhã, às 10 em ponto.
— Se precisar de mim, não conte comigo. A não ser nos 50 minutos da sessão, é claro. Amanhã, às 10 em ponto.
Ela chegou um pouco antes e se acomodou na poltrona que ele indicava. Ficaram em silêncio por algum tempo. Ele usava um rabinho-de-cavalo no cabelo grisalho e uma bata estampada com pequenos elefantes de todas as cores.
— Que gracinhas esses elefantinhos! – ela comentou, para quebrar o gelo.
— Não são elefantinhos. São desenhos abstratos, mas se você quiser me convencer do contrário, pode tentar – desafiou ele.
Recusado o desafio, ele colocou os óculos e abriu o bloco de anotações.
— Você tem dificuldade nas relações interpessoais com pessoas? – Por hábito de ofício, ela corrigiu mentalmente a redundância antes de responder “sim”. Ele anotou, sem pressa: “dificuldade nas relações interpessoais com pessoas”. Ela observou que a mão dele tremia. Ficou curiosa, mas não se atreveu a perguntar por quê.
— Houveram grandes perdas em sua vida? – Novo aceno afirmativo, após retificada a conjugação verbal. A mão trêmula registrou: “Houveram grandes perdas”.
— Qual a sua pior lembrança da infância? – Ela conteve o riso ao lembrar que o Dr. Hannibal Lecter, psicopata canibal do filme O Silêncio dos Inocentes, fizera a mesma pergunta à detetive do FBI Clarice Sterling. Pensou em responder, como a detetive, “O grito das ovelhas”, mas não sabia se o terapeuta assistira ao filme nem como reagiria à brincadeira. Talvez pudesse fazê-la algumas sessões adiante, quando o conhecesse melhor. Fechou os olhos por alguns minutos, relaxou e tentou se recordar.
— Acho que foi...
— O tempo acabou, Bete. Vejo você na próxima quinta. – Desde o início ele a chamara assim. Seu nome em nada se parecia com “Bete”, mas desistira de corrigi-lo: a associação parecia profundamente entranhada no inconsciente dele e talvez fosse traumático tentar desfazê-la.
Na saída, topou com um homem de chapéu, óculos escuros e terno preto amarrotado. Não conseguiu ver seu rosto, voltado para o chão, mas percebeu que usava luvas também pretas.
Na saída, topou com um homem de chapéu, óculos escuros e terno preto amarrotado. Não conseguiu ver seu rosto, voltado para o chão, mas percebeu que usava luvas também pretas.
— Pode entrar. – Disse o médico ao homem, e depois a encarou, contrariado:
— Esqueceu alguma coisa, Bete? – Aceno negativo e fuga para o corredor.
À noite, sonhou que ele a perseguia num campo cheio de ovelhas e tentava enlouquecê-la, chamando-a de Béééééte e cometendo seguidos erros de português. O pesadelo se repetiu durante a semana.
À noite, sonhou que ele a perseguia num campo cheio de ovelhas e tentava enlouquecê-la, chamando-a de Béééééte e cometendo seguidos erros de português. O pesadelo se repetiu durante a semana.
A manhã de quinta amanheceu fria e chuvosa e um acidente na L-2 fez com que ela se atrasasse para a terapia. Ao chegar, encontrou a porta do consultório aberta. Ele a aguardava com o bloco e a caneta em punho. As persianas fechadas ocultavam seu rosto, mas ela adivinhava o olhar atrás das lentes.
— Fale-me dos homens que traíram você. – Agora, sim, ela tinha muito assunto. Abriu a sombrinha num canto, tirou o casaco e deixou-se levar pelas recordações:
— Devo começar pelo primeiro ou pelo último? – Nenhum ruído além da chuva. — Bem, o último foi...
— Você alguma vez pensou em se vingar? – interrompeu ele. — Já quis... matar algum deles?
— Simbólica ou literalmente? O senhor sabe, sou escritora...
Nenhum movimento.
— Bem, como eu dizia, o último...
— Adeus, Bete. - Ele murmurou, com a voz cansada. — Não posso continuar a tratá-la. Encaminharei o caso a um colega.
Por que eles sempre faziam isso quando ela começava a se soltar? Frustrada, recolheu o casaco e a sombrinha.
— Acerte com a secretária. – Finalizou ele, dando-lhe as costas e encaminhando-se à janela para observar a chuva.
No dia seguinte, ao chegar ao trabalho, ela notou que as pessoas paravam para olhá-la e faziam comentários discretos. Ao pegar o jornal, surpreendeu-se com a própria foto na manchete de primeira página: Assassinato na Asa Norte. Refeita do susto, constatou que a foto não era dela, mas de uma mulher parecidíssima.
Na página policial, a reportagem:
“Foi assassinada numa quitinete da 308 Norte, por volta das 20 horas, Elisabete Ramos Duarte. O criminoso, pego em flagrante, era paciente psiquiátrico no HPAP e confessou ter seguido ordens do seu médico, que foi preso em seguida. A polícia suspeita de crime passional”.
Lado a lado, no centro da página, os dois homens: um de terno preto amarrotado, a cabeça baixa, o outro de bata estampada com elefantinhos coloridos, o olhar brilhante de vidro.
Li com olhar colorido de vidro.
ResponderExcluirMuito bom.