Casas de infância

Nasci numa casinha humilde. Fotos em preto e branco mostram santos na parede, samambaias no armário, o jogo de porcelana pintado a mão, presente do casamento que logo acabou. Três degraus desciam para o banheiro escuro. À tarde, íamos com minha mãe comprar picolés de groselha, o sabor mais antigo na memória.
Havia perto uma fábrica de cerâmica, cercada de imensas chaminés de tijolos. Aos 30 anos, na única vez em que voltei à cidade, guiei-me pelas chaminés e encontrei o barraco ainda de pé. Não pude ou não quis entrar. Tirei uma fotografia de fora do portão, guardei-a por algum tempo e depois a perdi.
Papai teve êxito no comércio e alugou uma casa maior, em frente à vila dos bobinhos. Colméias se formavam nas árvores do quintal e taturanas amarelas queimavam nossos dedos em meio aos antúrios no jardim. Meu maior tesouro eram roupinhas de papel feitas com cola de polvilho e escondidas numa caixa debaixo da cama, longe de outras crianças. Ainda hoje procuro esse tesouro perdido.
A terceira casa de infância foi comprada na Rua São Vicente, a poucos passos da avó anjo da guarda. No primeiro dia, acordei no quarto claro, a camisola nova de cetim, e desejei: “Seremos muito felizes aqui”.
Fomos, por algum tempo. Brincávamos com as primas no quintal de terra enquanto Xodó, boneca loira de olhos azuis, quase do meu tamanho, assistia a tudo da janela para não se sujar. O bolo da tarde começava a cheirar no forno e tudo parecia perfeito.
Em noites de tempestade, ouvíamos casos de assombração ou perseguíamos sombras fugidias de animais na parede. Tremíamos de aconchego debaixo do cobertor, enquanto mamãe cantava baixinho para nos fazer dormir.
As casas de infância já não existem, mas eu sempre as visito em pensamento e saudade, um pouco antes de adormecer.

(Imagem: Cristina's World, Andrew Wyeth)

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