Antiginástica



— Você precisa fazer um trabalho mais forte com sua infância -, disse ele, virando-se na cama. Ela demorava duas horas para chegar ao orgasmo e chorava muito quando o atingia. Alguém estava com pressa? — Procure a Elza - ele continuou. — Ela acaba de chegar dos Estados Unidos com uma técnica nova. Uma amiga minha teve uma melhora im-pres-sio-nan-te. Você nunca mais será a mesma.
Tratava-se da antiginástica, método de autoconhecimento que propiciava o contato profundo com o corpo e a liberação das emoções impressas no tecido muscular desde o momento em que nascemos.
Elza atendia numa confortável casa no Lago Sul. A sala que servia de consultório quase não tinha móveis, apenas uma cadeira, um enorme tapete e um aquário sobre a mesinha de canto. Os peixes, grandes demais para o aquário, nadavam espremidos e, aparentemente, infelizes. — Seus peixes estão espremidos - pensou em dizer, mas se conteve. Ainda não tinha intimidade para fazer o comentário.
A terapeuta não falava muito. Na sessão preparatória, mandou que se despisse e deitasse no tapete. Apalpou seus músculos por um longo tempo e disse, com um leve sotaque:
— Sua musculatura está muito enrijecida, honey, precisamos ir devagar. Pode se vestir. Deixe o check com a secretária. - E acendeu o cigarro, sinalizando que a consulta terminara.
A terapia foi dividida em quatro etapas. Primeira: desbloqueio de tensões acumuladas na área genital. Novamente nua no tapete, recebeu ordens de se masturbar e de intercalar gritos com inspirações profundas, a intervalos regulares, até que atingisse o orgasmo, quando deveria gritar a plenos pulmões. O exercício também servia como preparação para o parto. Ela tentou chegar ao clímax sob o olhar atento da terapeuta, mas não conseguiu. Após três sessões, resolveu fingir um orgasmo para passar à etapa seguinte. Deu um grito dilacerante, retorceu-se no chão e simulou um choro convulsivo.
— Congratulations! Você acaba de despertar uma zona morta do seu corpo e agora vai sentir um grande fluxo de energia na pélvis. Pratique com seu namorado. - Ela praticou e, graças aos gritos e inspirações, reduziu pela metade o ciclo orgásmico.
Segunda etapa: recuperação da maleabilidade organomuscular. No questionário sobre sua infância, mencionara o trauma adquirido nas aulas de ginástica no grupo escolar. O terror a acompanhava até a idade adulta, e eram freqüentes os pesadelos em que se partia em duas ao tentar a cambalhota exigida pela professora.
Chegou receosa. — Hoje vamos dar a cambalhota, - avisou Elza, estendendo o colchão. Após diversas tentativas frustradas, tomou impulso, pediu força ao espírito da avó e completou o movimento. Não se partiu em duas, como temia, apenas ficou com um torcicolo que a impediu de trabalhar na semana seguinte. Mesmo assim, repetiu o feito, orgulhosa, para o namorado, que se excitou muito ao vê-la se contorcendo e passou a exigir a cambalhota nas preliminares.
Terceira etapa: contra-reação às agressões introjetadas no sistema neurovegetativo. Elza a fez relembrar as críticas que tinha ouvido calada, desde o útero, e lhe enfiou o dedo na garganta para que, literalmente, as vomitasse num balde trazido para esse propósito. O estômago lhe doeu muito com o exercício, mas ela se sentiu mais leve, mais autoconfiante.
— Você ultrapassou todas as barreiras até agora, darling. Só falta uma para que possa levar uma vida absolutamente normal.
Foi apreensiva para a última consulta, que tinha por objetivo a verbalização da causa primária da retração corporal inconsciente. Desta vez, Elza também se sentou no tapete e lhe segurou a cabeça com força.
— Repita: “Minha mãe é uma filha da puta” - mandou, enquanto lhe apertava o crânio.
— “Sua mãe é uma filha da puta” - ela repetiu, constrangida.
— A minha, não, a sua! Repita: “Minha mãe...”
— Minha mãe...
— “...É uma filha da puta!”
— É uma... É uma... Eu não consigo! - ela disse, soluçando, desta vez de verdade.
— É porque você é mole, - acusou Elza.
— Eu não sou mole, eu sou sensível! - respondeu, desafiadora.
— É a mesma coisa. É por isso que as pessoas moles me procuram: porque eu sou dura.
— É por isso também que os peixes no seu aquário vivem espremidos? - ela finalmente verbalizou.
A teraputa demorou alguns segundos para responder:
- O.K. Acabou. Goodbye. Deixe o check...
Ela não tinha certeza se o trabalho havia realmente sido concluído, mas num ponto o namorado tinha razão: nunca mais seria a mesma após ter se submetido à terapia da antiginástica.


(Velhota, eu?, Thesaurus Editora, 2007)

Comentários

  1. Querida Luci:
    Adorei! O bom gosto da combinação imagem-texto valorizou ainda mais a estética literária da sua escrita!
    Agora você está no espaço do infinito de um mundo sem sem fronteiras que precisa te ler!
    Um abraço.
    Alexandra

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