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Mostrando postagens de 2007

A retrospectiva do velho menestrel

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Nestor Kirjner Andei um bocado por Brasília no ano de 2007, fazendo o que gosto e trabalhando pela cultura da cidade. Não vi tudo, participei apenas daquilo a que pude assistir. Mas, modestamente, destaco algumas coisas que vi e ouvi com emoção e prazer, nesse triste ano político de nossa existência. E ELES CONTINUAM POR AÍ: No ano em que Renan, Mônica Veloso, George Bush e Hugo Chávez reinaram absolutos nas manchetes brasileiras, fica difícil falar em esperança. Meu xará argentino também deu uma força ao caudilhismo emergente na América Latina, promovendo a segunda ressurreição de Evita, desta vez com o nome de Cristina Kirchner. A “prima” é minha, mas vai sobrar pra todos nós! E o Evo boliviano? Que que é isso, Sílvio Luiz? Mas deixa pra lá! Coluna cultural não deve falar de política. Talvez seja melhor esquecer os perigos de 2008 e dar um passeio pela música do Planalto Central em 2007. Vamos lembrar o que houve de bom por aqui. Alô, Joaquim Barbosa! Vê lá, Mermão! Não vá decepciona

Convite para o aniversário de um perdedor

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Marco Antunes Eu quero convidá-lo para comemorar o nascimento de um cara que viveu muitos anos atrás. Um sujeito franzino que nunca teve porte de general e não sonhou jamais conduzir exércitos e batalhas. Um pobretão de família obscura cujo pai não passava de um simples operário e a mãe, pelo que se sabe, fora apenas doméstica. Nosso homenageado jamais se sentou entre os letrados de sua época como um igual. Suas letras eram mínimas, sua erudição inexistente e jamais investigou as sutilezas da filosofia ou enfrentou os mistérios da ciência. Dir-se-ia um homem comum que respeitava os costumes e cumpria as datas culturalmente acordadas. Você, com todo direito me perguntará agora pelos feitos que o notabilizam para que se o comemore. É uma justa pergunta sem resposta previsível ou com respostas povoadas mais de negativas que de afirmativas. Não lutou batalhas nem ganhou uma guerra; Não construiu monumentos nem governou seu povo; Não viajou pelos campos abstratos da mente nem descortinou no

Por quem os jingles dobram

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Eneida Coaracy Queridos amigos (do batente do dia-dia, não tão distantes, distanciados pelas circunstâncias da vida, de além-mares, daqui e de acolá), Cá estamos novamente encerrando este ciclo temporal chamado ANO, criado pelo homem para ajudá-lo a demarcar etapas, ciclos, movimentos, passagens. Sinos rebimbam, jingles ecoam repetidamente na mídia, urgindo todos a comprarem, presentearem-se, confraternizarem-se. O Natal está chegando! Um Novo Ano anuncia vida nova, promessas de realizações pessoais e de sonhos, mudanças e viagens. Tudo é mágico e possível. O verdadeiro sentido do Natal, perdendo-se nesta ruidosa confraternização consumista inventada pelo homem. Entretanto, torna-se praticamente impossível escapar do redemoinho natalino, de cuja força magnética ninguém parece conseguir escapar, inclusive eu própria, que aqui estou tentando me conectar aos meus amigos queridos e não me deixar fragmentar por esta ventania salpicada de falsas estrelinhas douradas — que cegam de tanto que

Felicidade, eu tenho!

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Sábado à tarde, comemoração do Dia das Mães na escola. Pela manhã, já ganhei o presente: um cartão tridimensional feito na aula de artes. No centro dele, um menininho com um coração pregado no peito diz que sou legal e que gosta muito de mim. O estacionamento, insuficiente em dias normais de aula, hoje cospe os carros para as quadras vizinhas. Paramos a quase um quilômetro de distância e fazemos o trajeto a pé, no sol escaldante das 15 horas. Dezenas de famílias fazem o mesmo. O pátio está lotado. Levo meu filho ao camarim, enquanto vou à Secretaria pegar a camiseta que devo usar no evento. Ela é preta e tem frase estampada em vermelho: “Felicidade, eu tenho!” A das crianças é branca, com os mesmos dizeres. Por precaução, encomendei o tamanho GG. Foi exagero: ela quase chega aos meus joelhos, mas não há outra disponível. A diretora lê um bonito texto, ao qual ninguém presta atenção. Todos se fazem a mesma pergunta: “Quando vai começar?”, ou melhor, “Quando vai terminar?” Com meia

Comentário sobre "Velhota, eu?"

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Cara Luci, Muito agradou-nos receber seu primeiro livro de crônicas e, mais ainda, ler o texto Felicidade, eu tenho! Dialogar com você por meio de seus enredos ambientados em Brasília foi um prazer. Parabéns pela sensibilidade, espontaneidade e sutileza de seus textos que, certamente, fazem-lhe porta-voz de muitos brasilienses no cotidiano de nossa cidade. Um abraço, Márcia Márcia Gomes Fernandes é diretora do Colégio Arvense. http://www.arvense.com.br/

Enamoramento 2

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Maria Amélia Costa Coisa estranha essa de querer o outro por perto, acercando-nos com paparicos e cuidados e a um passo poder tocar o seu braço e mergulhar pela abertura côncava entre o tecido e a pele em busca de um músculo contornado pelos movimentos do homem. Num instante se sentir em um tamanho que cabe nos poros que moldam o corpo e nesse mesmo instante deslizar inundando-se em abismos de sensações perpendiculares, doces, cegas. Confundir-se nele, movida pela inocência angelical que conduz a luz por olhos moventes numa posição que, abaixo, é de entrega confortável e dolente. Ele, sempre crescente, contorna o espaço e o tempo, alonga a paisagem. Os dedos dela, cúmplices no gesto, tateiam imprimindo marcas digitais reunindo, ali, a consciência do mundo. Depender dele. Ser, apenas nele. Sentada ao lado, não precisa de nada, apenas ficar ali e se deixar... Como um corpo sem alma, desprovido de essência e de sentido. Se deixar. Sem medo, sem angústia, sem pressa, sem frio. Um não ser.

Sem trololó nem xurumela

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— Eu vou lhe incomodar, mulher. A voz possante, o sotaque potiguar, as implicações que ela adivinhava no verbo “incomodar”, tudo isso dava à frase um forte apelo erótico. Será que o antigo colega de ginásio, agora reencontrado num curso de reciclagem na empresa, era igualmente vigoroso em outras áreas? Havia evidências disso: três ex-mulheres e sete filhos. Ela acabara de trazer das férias o minúsculo Dicionário de Potiguês e o volumoso Dicionário do Nordeste, com 5.000 palavras e expressões. Procurou em ambos, no verbete “incomodar”, algum sentido que confirmasse sua intuição — encontrou “perturbar”, que, por sua vez, remeteu a “desassossegar”. Sim, ela queria ser desassossegada. Aproveitou para estudar o minidicionário. Quem sabe usaria seus conhecimentos muito em breve? Por coincidência... não, por força do destino, reencontravam-se após 30 anos. Ela sempre o admirara de longe, na escola. Quem sabe era o homem da sua vida, como naquele filme do Tom Hanks? Imaginou-se desfrutando a

Um recado amoroso para minha amiga Rosângela

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Maria Amélia Costa Querida Rosângela: Ontem pela manhã e em tempos anteriores eu dizia pra você: Querida, tenha cuidado. Sei que você não está enxergando direito e por isso não consegue manter-se no seu eixo. Confusa, nesse labirinto das labirintites, você anda em zigue-zague numa cadência estranha. Por vezes, num movimento em espiral que a faz levar a mão à cabeça você diz: Por favor, me ajudem eu ainda não estou bem. Todo mundo sabe o quanto sofrem aqueles — e, principalmente, aquelas — que se distanciam do eixo que os mantém. Dizem que labirintite é uma coisa horrível! Mas é o distanciamento (de eixo, quero dizer!) o que nos maltrata. Mais uma vez, querida, cuidado. Por esses dias você estava saindo, a duras penas, de uma depressão. Todos sabem, também, que depressão é um buraco fundo, escuro e escorregadio. Há até quem escute línguas estranhas e promessas vãs quando adentra por buracos assim. Para uma pessoa com depressão e labirintite parece que não há salvação. Mas... Ontem, aind

Istrogonofe com safrão

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— O que tem de almoço, Ana? — Fiz istrogonofe, Ci. — Por que está amarelo desse jeito? — Tava muito branco, pus um pouquinho de safrão. — Oba! Você fez mousse de chocolate? — É arroz doce, Ci. O açúcar parece que queimou demais. — O baixinho almoçou? — Igual um leãozinho. — Ele comeu o strogonoff desse jeito? — Não, ele quis núguets com molho babicu. E um copão de Coca-Cola! — Levou o quê de lanche? — Orkut e chips. —Tem café novo, Ana? — O pó acabou, Ci. O coador também. — Vai lá comprar. Estou doida para tomar um café. — Tem outro problema. — Qual? — Vieram cortar o gás. — Por que você não me ligou? — Não gosto de incomodar a Ci. O moço disse que se pagasse na hora, não cortava. — Ai, ainda bem! Você pagou? — Não tinha mais dinheiro. — E o que eu deixei, Ana? — Gastei na floricultura. Ci gostou das gerbras, gostou?

Caminhos por dentro

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Maria Amélia Costa Era um desses finais de manhã de sol quente. Acabara de sair do consultório e se dirigia para o shopping. Em breve o calor do sol ficaria lá fora. Combinara com o filho de se encontrarem, mas ainda era cedo para o almoço e ele talvez demorasse a chegar. A porta automática se abriu, ela entrou e logo sentiu o conforto fresco que circula pelo interior de lugares assim. Ao seu lado havia muita gente nesse ir e vir que marca a humanidade inquieta dos humanos. Estava cercada por essas criaturas e sentia-se confortável. O conforto a fez sorrir enquanto subia pela escada rolante evitando segurar naquelas laterais que também rolam, mas que não acompanham com a mesma velocidade os degraus que sobem e descem como se tivessem vida própria – observara. Num pensamento solto avaliou que havia uma cumplicidade velada porque o consultório do psicólogo, o da massagista e o do dentista que ela, agora, freqüentava ficavam todos ali, nas imediações do lugar. Mas não se deteve nesse pens

O pequeno capitão

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— Mãe, se eu fizer uma pergunta, você não fica triste, deprimida, nem com cara de preocupada? — Não - respondeu a mulher, já acostumada com a abordagem do filho. — Jura? — Juro. — Como se faz uma adoção? Chegara o doloroso momento que ela vinha adiando e do qual não podia mais fugir. Tentou desconversar: — De bebês? — Não, mãe, de animais. Ficou calada, esperando que ele desviasse a atenção para outro assunto. Sabia bem aonde a conversa ia levar. Ele lhe estendeu um papel: — Está aqui o número do canil. Deu na televisão. Posso? Posso? Posso? — Pode - ela concordou, refém da velha promessa e do olhar suplicante. Há algum tempo ele vinha pedindo um cachorro. Nas longas férias de janeiro, sentiu-se só e voltou a insistir no pedido. — Tem certeza? Tem certeza de que tem certeza? Você está brava comigo? Não mesmo? — Sim, sim, não, não. Estava prestes a se iniciar a terceira experiência canina da pequena família. A primeira: Vivi, Yorkshire emotiva e carente, objeto de abaixo-assinado no pr

Enamoramento 1

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Maria Amélia Costa Olha-o por trás. Sentada ao lado dele fez com o olhar um contorno impossível. Ela gosta de olhar por trás, comedida em feições que se expressam na clandestinidade de quem acredita que pode ver além. Não ser vista e assim cercar o ser amado com cercanias quadradas, redondas, perpendiculares, transversais. Trazer fiozinhos sutis e delicados das entranhas da terra para o atravessarem, o fixarem e o aprisionarem no tempo que é só dela. No tempo que é dela quer, também, vê-lo pelo lado do lado dele: nem à frente, nem atrás, nem de cima. De cima, talvez. Contudo, de lado. Mas, não quer ser vista. Nessa condição clandestina o olhar o atravessa na pretensão de luz que tudo ilumina, decifra, expõe, constrange. Ele está distraído com alguma coisa, tocando alguma coisa ou, simplesmente, olhando em frente enquanto fala com ela. Mas ela não quer falar. Talvez até queira. Talvez até fale uma banalidade qualquer. Mas, definitivamente, não é falar o que ela quer. Não naquela hora. N

Barriguda

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— Quantos meses? — Que barriga linda! — Já sabe o sexo? Por onde eu andava, recebia olhares e perguntas gentis. Nas filas do banco, o guarda ou gerente vinham me lembrar do atendimento preferencial às gestantes. Jovens e idosos se levantavam para me ceder o lugar. Mulheres me olhavam com inveja. Uma senhora de cabelos brancos no parque pediu permissão para tocar meu ventre e se emocionou ao ouvir um coração batendo. Uma colega disse que minha pele estava linda; outra previu que seria menino, pelo formato pontudo da barriga. Durante meses fui alvo de incontáveis delicadezas. Só havia um problema: eu não estava grávida. Na verdade, eu tomava um remédio que dilatava o abdômen e causava a protuberância. Quando surgiram as primeiras perguntas, eu tentava explicar a situação. Depois me cansei e resumia a resposta a “não estou grávida”. Em seguida, adotei o comportamento passivo-agressivo: — Onze meses. — A sua também. — É gay. Encolhia a barriga e prendia a respiração sempre que me aproxi

Pessoas que nos atravessam

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Maria Amélia Costa Eu o encontrei. Entrei na livraria fazendo uma daquelas coisas que se faz por hábito, como esse que tenho de pesquisar em livrarias cada vez que vou a um shopping center. Um pouco melancólica e entregue ao acaso não coloquei atenção nas pessoas que se movimentavam no interior da loja. Estava distraída quando fui surpreendida por um “oi” vindo ao meu encontro. Virei. Era ele. Abraçamos-nos e nos dissemos alguma coisa, ao mesmo tempo, numa surpresa única. Não consigo imaginar a expressão do meu corpo naquela hora. O que disseram os meus olhos ou a minha boca trêmula. Ele estava ali, na minha frente, como um milagre. Tantas vezes conversei contigo nos tempos de ausência. Disse tantas coisas! Compartilhei momentos. Contei histórias e feitos meus. Falei da falta que sinto das vezes que sorrimos juntos por coisas banais. Falta dos cuidados teus. Que por vezes me vejo em atitudes tolas, iluminando pequenas coisas que vieram de ti. Emoldurando. Ilustrando. Colocando sentido

Deu zebra

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Tarde de sábado, 30 graus, umidade a 20%. Mãe e filho vão ao cinema no Pátio Brasil. Escolhem um filme sobre uma zebra que, abandonada ainda filhote pelo zoológico, é encontrada por um fazendeiro e cresce ao lado de cavalos puro-sangue, pensando ser um deles. Stripes, como passa a ser chamada, é motivo de chacota de animais e homens, mas não desiste do sonho de vencer a corrida mais importante da região. O menino corre para pegar a almofada infantil. Na fileira de trás, uma velhinha corcunda e cheirosa também foi colocada numa almofada e balança os pés, satisfeita, enquanto se delicia com um saco de pipoca. Durante o filme, será a vez de chupar balinhas, com um ruidoso movimento de sucção que se contrapõe à trilha sonora. Enquanto o filho se diverte com a estória, a mãe volta no tempo e constata, com alguma tristeza, que, ao contrário de Stripes, sempre se sentiu zebra, e que para isso contou com a ajuda de muitos que não lhe perdoavam a estranhez nem a superioridade. Na infância, Magr

Uma pessoa em busca de palavras

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Maria Amélia Costa Ela gosta de livrarias, principalmente aquelas que têm, anexo, um café. Gosta de ficar ali para folhear, apalpar, procurar, sentir. Sentir cheiro de livro tomando café. Foi em uma livraria que encontrou a professora e escritora da qual ela prefere não dizer o nome, agora. Conversa vai, conversa vem foi feito o convite para conhecer uma oficina de literatura. Levou o convite nas páginas de um livro de crônicas que acabara de ser autografado. Naquele momento o convite já estava aceito. Depois da decisão veio a dúvida. Será que deveria ir? Pesquisou pelas páginas da internet - nessa bisbilhotice tão, aparentemente, fácil nos dias atuais. Da pesquisa ficou a impressão de que se tratava de um grupo muito específico de funcionários da Câmara dos Deputados. Deve ser um monte de gente metida a besta, pensou. Mas, sem que falasse nada, o convite foi reforçado e então resolveu ir e ver o que acontece. No calor de quase meio dia de um dia quente de início de primavera no ano 20

A visita

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Não vejo o Sr. José Maria há alguns dias e não consigo esquecê-lo. Em algum ponto do trajeto entre casa e trabalho, certamente à vista de algum ipê amarelo úmido de chuva, os desejos do meu taxista de confiança se misturaram aos meus. Decido visitá-lo à noite no ponto-casa. Encontro-o sentado num banco de madeira, assistindo à TV. Ele se espanta com meu vulto vermelho emergindo do escuro — estou de vestido vermelho, salto alto, brincos de argola e pulseira. Ele está à vontade, de chinelos. Não sei qual de nós está mais surpreso com a improvável visita. Ele se levanta para me cumprimentar e pela primeira vez o vejo de pé. Meu amigo é de uma feiúra cativante: magro, um pouco mais baixo que eu, rosto pequeno, olhos pretos minúsculos, nariz grande, orelhas enormes. As mãos rústicas e miúdas parecem gravetos. Os dentes que não perdeu estão escurecidos. Ele me indica o banco, pega uma cadeira e começamos a conversar. Observo à minha volta: os sapatos debaixo do banco, algumas camisas em cabi

Dente de Coelho

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— Quando a senhora se sentir apta a tratar os dentes, me procure. - O endodontista bateu o telefone. Por que estava com raiva? Ela só desmarcara três consultas, e por um bom motivo: estava no auge da TPM. Enfrentar o motorzinho nessas condições seria tortura. Magoada, não o procurou novamente. Próximo na lista: Dr. Teógino, cirurgião-dentista indicado por uma amiga, que abrira bem a boca para lhe mostrar o trabalho que ele fizera. Parecia bom. Marcou e foi. — Tenho um medo de dentista! - Ela disse, tentando sorrir. Sempre os alertava. O Dr. Teógino pareceu não ouvir: — Seus dentes estão péssimos! Preciso refazer tudo - Ele já calculava, mentalmente, quanto poderia cobrar. Estava num aperto danado. Sentiu pena dele: era quase um anão, a voz desproporcionalmente grossa. Tinha barba de bode. Deixara aberto na mesa um antigo livro ilustrado de dentística para impressioná-la. — Então, está disposta? - indagou, esperançoso. Precisava retomar a clientela, pois abandonara a profissão por vário

Poema em flor maior

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Anabe Lopes O amarelo do ipê sobre o chão vermelho do cerrado Prenuncia o fim da aridez na alma da cidade Enfim, hão de vir as primeiras chuvas... Águas coloridas e perfumadas de primavera Reverdecerão os gramados do plano alto de Brasília Caem as últimas flores do ipê, Cessam os ventos e os dias são mais quentes, Adormeço a espera da primavera que virá... Sonho a umidade do beijo da chuva... Rociando humanidades em gotas pelo ar. Vivas flores de vivas cores de manhãs de primavera Correm vera no meu sangue. O cheiro da terra molhada, e o sol nascente Faz germinar a poesia e a semente E revela a beleza da espera Delonix regia, vem re-velar o mistério inexplorado, Escondido nas entrequadras dos nossos desejos. Em cada flor revela e oculta um beijo... E há tantas flores... Incandescentes olores Ainda flamejam nos olhares... A divina flor do paraíso! Dá a cor e tira o siso. Flamejante volto à infância, onde flamejam as últimas flores da estação... Espadas pendem dos galhos e flores forr

Bandeira 2

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Acordo sentindo uma leve tristeza na manhã de sábado. Cai uma chuva fina desde a noite passada. Finalmente vou buscar meu carro na oficina. A revisão demorou mais que o esperado, e por isso andei de táxi uma semana. Chamo o Sr. José Maria para nossa última corrida, já com saudade das suas histórias. Ele quase não dormiu. Está com os olhos vermelhos e a barba por fazer, mas ganhou um bom dinheiro com as chamadas noturnas: 21 horas. Jorge contrata uma garota na 314 e a leva até o Colorado. As preliminares têm início já no carro e se prolongam no estacionamento do motel, enquanto o casal aguarda uma vaga. 21h40min. Selma segue o marido até uma boate no Conic. Há muito tempo ele não a procura. Está desconfiada de que tem outra mulher. 22 horas. Mel vai comemorar 45 anos com amigas no Gilberto Salomão. Seu pedido secreto de aniversário é encontrar um homem bonito e carinhoso com quem passar a noite. 23 horas. Bernardo, viúvo há um ano, vai até o Alpino’s, no Parque da Cidade, tomar um chop

Linguagem

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Anabe Lopes Busco nos recônditos da lembrança a linguagem da plebe em que fui formada e linguagem do amor e da dor em que fui gerada Sorverei o perfume dessa flor teimosa Que vomitará o tédio, Sobre o negro asfalto, De piche, de pedra e de sangue Ela expressará o sentido da seiva corrente nas artérias do homem morto sob o asfalto que fará nascer uma esperança amarela De um futuro negro, E haverá mais flores rompendo o nojo Teimosas e amarelas flores Amarela esperança. Decifrará dor de que somos feitos Desfará o nó de existir Despencará no mundo escurecido Iluminado canto alegre de pássaros teimosos ao nascer de um dia teimoso e ensolarado que vencerá a poluição e simplesmente brilhará!!

Cala a boca, cachorro!

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Acabamos de nos mudar para o apto. 105. Quem mais sente a mudança é nossa cadelinha Vivi, que, acostumada a ficar solta na chácara durante quase cinco anos, agora está confinada. No primeiro dia, nervosa, faz o n° 1 no elevador, por azar, no momento em que o vizinho do 106 desce, descalço, para pegar o jornal. Ele pisa na poça, percebe o que é e vai direto reclamar à síndica. Recebo a primeira notificação do condomínio, lembrando os cuidados necessários com os animais. Curiosamente, o cachorro da síndica, seu amigo inseparável, tem livre trânsito no prédio. Engulo a advertência. Vivi está mais calma. Uma manhã, porém, não se segura a caminho do parque e faz o n° 2 ali mesmo na escada — a empregada tinha sido instruída a não mais usar o elevador. O vizinho também não o usa mais e sai nesse instante para o trabalho. Desce, apressado, e resmunga quando um chiclete parece pregar no sa pato. Chegando à garagem, olha melhor e dá um grito ouvido em toda a vizinhança. Segunda notificação, am

Canção de amor

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Anabe Lopes Te encontro no beijo do vento, um sopro no tempo. Nos olhos da lua te vejo, a todo momento. Almas de flores flutuam, no céu de um abraço. No abraço um beijo de vida, remanso, riacho. Mágica essência da terra, desliza o momento. A voz suave da chuva, sussurra o teu beijo. Olho no céu um lampejo, no azul horizonte Da água que escorre em meu corpo, renasce um desejo. Da espuma das ondas do mar, divino carinho. Ao som dessas águas azuis, grito seu nome. E o mar te entrega um segredo, na areia da praia. E na eternidade das ondas, eu posso te ter.

O eqüino estrangeiro

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Leonardo Oliveira O eqüino estrangeiro, despedaçado pelo seu passado, avistava o horizonte, deslumbrado, quando chegou à fazenda. Receoso, logo avistou uma criança no alpendre da enorme casa. Foi quando os olhares se entrelaçaram. Por trás do sorriso sutil e dos olhos famintos, a criança escondia um amor puro e colorido, como as violetas e margaridas sorridentes em sua janela. Não havia brutalidade ou manchas de uma vida desgastada. Era puro. O olhar da criança confortou o eqüino. Aos poucos, ele foi juntando seus remendos e renasceu pelas mãos da criança que, todas as manhãs, acordava para contemplá-lo do alpendre de sua casa.

Silêncio

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Anabe Lopes E de repente acordei E tudo era silêncio Um silêncio que cortava o corpo do sonho ao meio Uma enorme cachoeira silenciosa Os pássaros ensaiavam os sons e produziam só o silêncio e o silêncio reproduzia um grito de dor As crianças vinham a mim sorrindo e suas palavras silenciosas calavam mais a minha alma que vertia lágrimas silenciosas E a nossa música passou a ser o silêncio... Tenho (?) 41 anos e 4 filhos. O tempo que tenho é o que virá, se vier,e passará, porque quando paramos para pensar o agora ele já é passado. Os filhos são do mundo e os consagro a Deus, e que sejam atores e construtores da vida e da fé. A poesia é minha forma de provar intensamente a vida, de vivenciar a sensação de habitar o espaço entre o ser o não ser, o crer e o não crer, o viver o não viver, o fazer e o não fazer... o dizer e o não dizer; esses espaços plenos de sentimento de mundo em que nossas almas dançam entre a realidade e o sonho. É minha forma de não calar, mesmo sabendo que a palavra es

É meu!

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— É meu! É meu! É meu! - A mulher saiu correndo da outra ponta do bloco e veio gritando furiosa em minha direção, debaixo da forte chuva. Já eram 14 horas e, aparentemente, ela também estava atrasada para o trabalho. — Não, dona, eu sou é dela - explicou calmamente o Sr. José Maria, saindo do táxi e apontando para mim. — Mas eu chamei faz tempo! - ela insistiu. — Foi radiotáxi? É assim mesmo: a senhora paga menos, mas espera mais. Já deve estar chegando. Ficamos os três ensopados, enquanto ela se convencia de que eu não roubara o táxi que ela esperava há mais de 20 minutos. — A senhora pode me ceder a vez? - suplicou ela, me oferecendo uma nota de 10 reais. Eu estava meio dura, mas nem me passou pela cabeça aceitar a oferta. O Sr. José Maria valia muito mais. — Desculpe, o chefe corta o meu ponto - menti. Para sorte de todos, o radiotáxi dela chegava nesse instante. Despedimo-nos e nos acomodamos nos respectivos carros. — Tem gente que se desespera à toa, né? – comentou meu motorista.

Nostalgia

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Leonardo Oliveira E todos aqueles momentos mais do que especiais que tive o privilégio de viver um dia continuam guardados a sete chaves dentro do meu peito. São como cachorrinhos recém-nascidos: frágeis por demais. Tenho medo até de relembrá-los além da conta para que não sejam mudados. Não quero estragá-los. Não, em hipótese nenhuma! Seria irreversível. Seria como perder um amigo num acidente de carro. Mas acho que foram no mínimo corrompidos por mim e pela minha terrível necessidade de praticar o verbo "lembrar". É como se fosse um antidepressivo: a nostalgia cura meus momentos de dor e solidão. O que posso fazer? O melhor mesmo é que tais momentos continuem guardados até que chegue a próxima tarde vazia e nostálgica. Quem sabe amanhã, talvez.