Velhinhos de Papel

Na bela manhã de sábado, 18 de fevereiro, chego de táxi ao Lar dos Velhinhos Maria Madalena, próximo ao Núcleo Bandeirante. O local é amplo e arborizado. As árvores são antigas, a grama está verde por causa das recentes chuvas. Há muitos bancos de cimento, pintados em cores diferentes e a curta distância um do outro, como se o caminhante precisasse descansar a cada dez passos. O ambiente é de paz e silêncio, como uma casa vazia no meio da tarde.

Não escrevo há quase seis meses. O computador pifou, o smartphone foi roubado. Perdi todos os arquivos criados ao longo de três décadas. O técnico que supostamente os recuperaria apagou, sem querer, todo o conteúdo do HD. Fiquei sem memória. Por sorte, antiquada que sou, costumo imprimir e guardar tudo. Esse hábito salvou minhas memórias em papel.

Minha presença hoje no Lar dos Velhinhos se deve ao convite do escritor e jornalista Arisson Tavares para uma breve entrevista ao seu programa Escritor Solidário. Recebo o roteiro antecipadamente, com apenas três perguntas sobre meu livro Velhota, eu?

Uma velhota entre velhinhos — a associação parece evidente e me conduz ao devaneio. Talvez daqui a algum tempo sejamos vizinhos de quarto. Tenho diversas reivindicações: trazer minha gata persa, Hannah; meu pastor alemão, James; e minha coleção de livros autografados, que podem demandar a construção de um pequeno anexo. Não vejo qualquer problema: tenho recursos suficientes para essas e outras melhorias. É preciso alvará? O Administrador é meu amigo.

Também teremos de anular a absurda resolução da Vigilância Sanitária quanto à milimétrica divisão dos móveis nos aposentos de dormir, ficando a cama no centro, a 30 centímetros de cada lado da parede. A vida inteira dormi encostada na parede! Ela nos dá — a mim, a Hannah e a James — a sensação de aconchego e segurança. Querem matar a velhota?

Outra providência urgente será mudar a cor horrorosa dos jalecos dos funcionários — vinho meio roxo claro, que lembra imediatamente os serviços funerários. Quem escolheu essa cor, pelo amor de Deus? A Vigilância Sanitária?

Terminada a entrevista, volto à realidade e observo os velhinhos quietos e silenciosos, o passo miúdo como se levitassem, a cabeça baixa desencorajando a aproximação de estranhos. Apenas as velhinhas mais assanhadas ou mais carentes se dão ao nosso abraço.

Quem são essas figuras etéreas que vagueiam no pátio e nos jardins? Que lembranças e sonhos têm para contar? Certamente, infindáveis histórias entrelaçadas com o fio dourado da saudade e envoltas num papel de seda que se esgarça aos poucos sem ninguém notar.

Assista ao Programa Escritor Solidário: http://youtu.be/fvFg7Ohyz80



Comentários no Facebook

Jussara Gabin    Quero comprar. Manda valor e número da conta que te mando o endereço. Adoro tuas crônicas
25 de março às 11:04

Olivia Maria Maia Maia   Coisa linda, Luci Afonso. Você quando põe o coração nas pontas dos dedos pra escrever, faz com que o meu dê saltitos. Que final maravilhoso. Beijos, querida.
25 de março às 12:51

Vera Harada Harada   Mto bonito Luci, mta sensibilidade em detalhes. Adorei. Parabéns.
25 de março às 18:38

Ester Lima Adoreiiiii   Luci linda crônica, tb não gostaria dos jalecos roxos e mórbidos das funcionárias  
7 de março às 00:20

Joana Assunção oi priminha que saudades ...... vc é demais minha escritora preferida. AMO vcs
29 de março às 20:15

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